1.12.22

Casa do azar

Glockenwise, “Vida Vã”, in https://www.youtube.com/watch?v=SEzz-FJP74E

Eis o ruído segregado pelos rochedos que eram o peito que recebia o mar. Se alguém se distraísse na falésia e caísse em falso, seria devorado pela fraga onde o mar se sujeitava a uma centrifugação violenta. Todos os anos havia vítimas, gente distraída, atraiçoada pelo assombro da vertigem. O abismo, e o mar, eram assassinos, como era sabido até pelos desatentos.

Não longe, um casino. As pessoas entravam no casino de costas para o mar. Não sabiam da paisagem. Sabiam que essa seria a paisagem à saída. Por muita fé (sem sentido metafísico) que colocassem na visita, interiorizavam a elevada probabilidade de saldarem a visita ao casino com dolorosas perdas materiais. Ao menos consolavam-se com a paisagem deslumbrante, o mar a embater na falésia ardilosa. Há notícias de uns quantos jogadores que, desesperados pela agonia de tantas perdas e pela falta de autocontrolo, usaram a vizinhança do abismo para cometerem suicídio.

 Os funcionários da emergência médica e dos bombeiros estavam habituados a retirar corpos das imediações da fraga. Não ousavam entrar naquele lugar: as correntes puxavam as embarcações para o fundo, era muito arriscado. De cada vez que havia registo de um corpo caído no mar, tinham de esperar pelo andamento da natureza até que as correntes e as marés cuspissem o corpo num amontoado de rochas limítrofe, ou no areal mais próximo. Os funcionários da emergência médica e os bombeiros não tinham por hábito ir ao casino. Desse azar não participavam.

Os funcionários do casino passavam por um tirocínio exigente. À semelhança do pessoal médico e dos bombeiros, eram treinados na exigente insensibilidade às misérias humanas. Não podiam aconselhar moderação aos utentes, não podiam prestar aconselhamento a título algum. A comiseração pela angústia dos perdedores era proibida, sob pena de processo disciplinar por incumprimento das obrigações profissionais. Na casa do azar, os funcionários eram os notários dos infortúnios que calhassem em azar aos jogadores. Não queriam saber dos suicídios na falésia, nem das falências ditadas à saída das salas de jogo. Não queriam saber das outras vidas. E eram invejados por isso.

O azar de uns é a fortuna de outros (ode aos lugares-comuns, outra sementeira do azar).   

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