19.12.22

Podemos ser os sapatos dos outros? (Desvios do porta-aviões pequeno-burguês)

António Vale da Conceição, “Remedy”, in https://www.youtube.com/watch?v=UoG5r7mWyCs

Tomemos o exemplo das frases que queremos levar em expediente: não podem ser telegráficas, ou parte do que pretendem mostrar fica perdido antes do tempo. O motor das águas mansas está nas mãos de voluntários que se atiram de cabeça contra as frieiras da água. Não se proteste contra a inércia. Ela só existe porque a deixamos ter nome próprio.

Uma luva órfã aparece no meio da avenida. Ninguém lhe dá atenção. As pessoas passam por ela, assoberbadas com a próxima empreitada a que vão chegar atrasadas – porque o atraso é o sangue nas veias de um povo. Outras passam apenas distraidamente, tão distraidamente quanto vagaroso é o seu passo. E, todavia, se perguntassem (uns e outros) o que guarda aquela luva num arquivo imaginário, talvez uma centena de páginas seria preenchida. As pessoas só se importam com o passado quando é o delas (com as exceções dos cidadãos exemplares que buscam conhecimentos na História e dos historiadores).

Ao lado, na esplanada concorrida, ouço uma mulher em confissão angustiada ao acompanhante: 

Hoje estava no semáforo, na rotunda grande. Enquanto esperava pelo verde, o olhar perdeu-se no asfalto. De repente, perguntei como seria quando estivesse acamada, definitivamente acamada, se não teria nostalgia daquele indiferente pedaço de asfalto, daquele instante tão irrelevante e, afinal, talvez não. Hoje não damos valor ao hoje e aos frutos que ele proporciona. Só quando o hoje se transforma em ontem é que mandamos dizer, através do futuro, que o hoje desperdiçado constitui uma preciosidade emoldurada pelo ontem. Antes que o semáforo ficasse verde, senti que tinha deixado parte de mim num futuro que desconheço. E daí, fiquei a contemplar o passado, que era o dia de hoje.

Se soubéssemos ser os sapatos dos outros seria mais fácil encorparmos a tolerância que protestamos a nosso favor. Este inflamado viajar pelos dias que correm pela fuselagem dos relógios é ultrajante. Não sabemos ser quem somos e queremos ser os que invejamos. Isso não é cair nos sapatos dos outros. É querer colonizá-los como parte do que se sabe que não conseguimos ser. Não há pior tique pequeno-burguês do que este ensimesmar diletante, este contínuo apalavrar de um grande fingimento, universal.

A ardósia em que se desenham as palavras é imune aos logros que nos tornam arremedos. Devíamos participar no catálogo de honestidades que se desembaraçam do imenso mar de fingimentos. Devíamos saber ser os sapatos dos outros, mas primeiro temos de aprender a ser o nosso próprio chão. Para não sermos passageiros movidos pela vontade nuclear dos esvaziados de remorsos, dos que adulteram as condutas a seu favor, com um terrível poder de persuadir os que se enfeitiçam pelo vapor artificial que é a pior anestesia de todas. 

Se soubéssemos dos malefícios da pequena burguesia (e, talvez, da burguesia inteira), seríamos inteiros. Mandaríamos o porta-aviões da burguesia ao fundo, sem hesitações.

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