Porão, como o clandestino. Não se alimenta o povoado dos mantimentos guardados no porão quando ainda são transportados desde remota origem? Desses mantimentos, a aritmética da sobrevivência, só sobram as palavras sobre iguarias preparadas que são o adestramento dos sentidos e o código da subsistência.
Ou porão, como esconderijo. Muitas vezes, por imperativo do anonimato. O perfil sem holofotes impetra a irrelevância nas ruas. Que ninguém seja reconhecido quando a rua está apinhada de gente e os rostos se entrecruzam, espiolhando-se reciprocamente. Os rostos avençados não se cuidam na desmesiricórdia cultivada. Desembaraça-se a fuligem com um simples sopro. Não se enquista na ossatura funda, não se torna o magma de um vulcão sem paradeiro.
Porão, também como forma verbal, um contrato com o futuro. A promessa de deposição de um objeto, de um ato, de uma palavra, de uma estante inteira, de uma intenção avalizada. Que ninguém descuide as juras desembainhadas: os azulejos perenizam-se, imunes à decadência que se costura nas bainhas do tempo. São seus juízes inexoráveis.
Porão, como exílio. Uma certa forma de misantropia. Fuga intencional das extravagâncias de um lugar que se tornou descaminho. Ou fuga do passado. No porão, ao menos, o reencontro. Como se o sangue se libertasse dos vieses que o adulteraram, sem que a parecença cumprisse o elixir da identificação.
É no porão que se alberga a imensa biblioteca da vida sem ficar à mercê das frivolidades hodiernas, dos lugares-comuns proclamados, com a solenidade do que desimporta, pelos macilentos procuradores do injuntivo saber estar com os outros. Na biblioteca encontram-se as páginas quiméricas que são o compêndio mínimo de um reencontro por dentro de si. Tal como se fosse preciso tirar as medidas de si, outra vez – as vezes que forem precisas. Não se mostram os dedos frágeis que aprenderam a não tiritar sob o efeito do frio. É no porão que os dedos doseiam o frio necessário para não ser delinquente.
O porão, arquivo máximo das memórias hasteadas no portal do futuro, sem porta-chaves nem código secreto. De porta sempre aberta aos que pressentirem um demiúrgico refúgio que os extraia à violência do mundo que existe. Um fingimento, para combinar com a farsa de que somos acionistas.
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