Faziam estátuas no gelo, os distraídos. Era para afugentar a distração, como se fazer esculturas no gelo fosse a prescrição de esculápios entendidos no assunto. Antes que fossem consumidos pela distração, antes que dezembro os colonizasse e deles pouco sobrasse para janeirar a seguir, entretinham-se a fazer estátuas no gelo e a fintar a distração.
As estátuas no gelo eram representações disformes de corpos, ou de edifícios que não se pareciam com nada, ou apenas abstrações sujeita ao mais puro subjetivismo. Talvez a indeterminação fosse a marca registada dos distraídos, pois não se concebiam a menos que a distração pendesse sobre eles. Se fossem a inventariar o elenco de distrações, preenchiam mil páginas por junto, um concurso de bizarrias. Um saiu de casa em cuecas. Outro, jantou no restaurante e esqueceu-se de pagar a conta (o que deu direito a visita à esquadra de polícia). Outro era habitualmente esquecido das datas de aniversários dos entes próximos. E mais um, que foi andar de bicicleta e se esqueceu de encher os pneus, ou outro que já nem comprava guarda-chuvas porque os perdia sistematicamente quando os inaugurava.
Os distraídos não se incomodavam por o serem. Desconfiava-se que a discriminação os apoquentava: havia sempre um solícito membro do coletivo que apontava a dedo um distraído, como se sobre ele se abatesse uma praga, com riscos de contágio associados aos não acometidos pela distração sistémica. Os distraídos apoquentar-se-iam com esta discriminação, se, não por acaso, não estivessem distraídos.
Para compensar a distração, entregavam-se à bricolage. Podiam ser estátuas de gelo quando os jardins públicos estavam colonizados pelo Inverno. Ou reparar canais de água depois de invadidos após dias de chuva a eito. Ou pegar nas ferramentas e enfeitar as árvores antes da festa da Primavera e levantar as barraquinhas de comes e bebes. Se não fosse a bricolage – é o que passa de boca em boca – os distraídos seriam ainda mais distraídos.
Estava por determinar se os distraídos foram coagidos à bricolage, ou se eles é que descobriram as propriedades terapêuticas por sua iniciativa. O que ninguém perguntou foi se os distraídos se importavam de serem distraídos.
Os que andavam pela margem oposta da bricolage rezavam (se fosse o caso; e se, entre eles, os ateus aceitassem o descompromisso do ateísmo) para não caírem no alçapão da distração.
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