- Correrias ao acaso se na tua direção viesse uma turba em correria possivelmente errante?
- Porque dizes possivelmente errante?
- Os que vinham a correr na tua direção teriam começado a correr panicamente porque outros iniciaram uma corrida possivelmente anárquica antes deles.
- E alguém sabia a razão de todos desatarem a correr?
- Diz-me tu.
- Como o posso dizer, se estou aqui parada à tua frente, apenas desassossegada pelo teu desassossego especulativo?
- Desafio-te a imaginares o cenário assim composto.
- Se estivesse na rua e do lado contrário uma multidão corresse sem eu saber de que fugiam?
- Sim.
- Talvez desatasse a correr no mesmo sentido. Seria coagida a engrossar a maré.
- Coagida?
- O que farias tu? Punhas a armadura do dissidente, a armadura que tanto gostas de envergar, e não te movias, à espera do cataclismo que sobraria da última pessoa que por ti passasse a correr?
- Não sou eu que vou desemaranhar o enigma. Faço de narrador, ou, quando muito, de observador desinteressado e imparcial que adeja sobre o cenário assim montado.
- E porque hei de aderir ao teu jogo?
- Porque gostas de jogar. Porque – conheço-te bem – não consegues resistir a uma demanda especulativa, mesmo aquelas que foram exoneradas de sentido.
- Posso começar por exonerar o narrador, ou o observador exterior, ou que quer que sejas...
- Não, não podes. O meu papel é inamovível. Sou, no exercício deste papel, intocável. Eu posso interferir com o curso dos acontecimentos. Tu não me conheces.
- Como podes interferir com o curso dos acontecimentos se há pouco deste a saber que és observador imparcial?
- Posso ser imparcial e ser-me dado interferir com os acontecimentos. As duas são mutuamente excludentes. Insisto: começavas a correria a favor da correria para ti sem sentido?
- Temos direito a impulsos irracionais.
- E sê-lo-ia irracional? Não é racional o gesto espontâneo de engrossar a maré se as pessoas vierem no teu sentido numa correria aparentemente sem sentido?
- Tenho de confiar na racionalidade das outras pessoas.
- E se o primeiro que começou a correr e contagiou uma multidão não tivesse razão para fugir?
- Apurar-se-ia.
- Quando? Quando todos fossem empurrados para um abismo sem saída e já não houvesse ninguém para apurar os danos e as responsabilidades?
- Não dramatizes. Apurar-se-ia que era uma corrida apenas para manter a forma física. e que uma multidão aderiu, muito embora vigarizada pelo propósito da correria que tresleram como fuga. Não se diz que somos propensos ao sedentarismo e que o sedentarismo nos mata vagarosamente? A correria não seria sem feitio, como vês.
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