31.5.23

Horas extraordinárias

Sean Carpio, “Ancestral Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=A5QwNuCX3Bc

Se puderes, ensina-me a semear as horas extraordinárias. Pega nos meus dedos e eu deixo que deles te sirvas para desenhares o dicionário onde se congeminam as horas extraordinárias. Prometo recompensa a preceito. Prometo ser diligente seguidor das horas extraordinárias que me souberes doar.

Destas horas que são extraordinárias fica a moldura da perenidade. A menos que a memória seja atraiçoada e o esquecimento se sobreponha, podendo-se duvidar se essas horas foram extraordinárias. Tê-lo-ão sido quando assim foram inventariadas – não pode sobre isso ser legítima a dúvida. Pergunto-te: as horas extraordinárias prescrevem, sabotadas pela memória controversa que se enquista como matéria morta, às custas da capitulação que vem com o tempo? E tu, sem hesitar, evocas a moldura da perenidade das horas extraordinárias. Elas desmentem o princípio geral da finitude das coisas.

Agora que me ensinaste a distinguir as horas extraordinárias, julgo que posso engordar a estipulação com umas mãos cheias delas. Muitas devem-se a ti, que ao mesmo tempo me arrancaste da letargia e és intérprete dessas horas. Confundo agora os dois papeis, mas não interessa. No exercício de ambos passaste a ser a mais extraordinária das horas, mapa por onde me perco sem me saber perdido, âncora que me devolve a lucidez que teimo em perder por perto, um ensino contínuo. É uma extraordinária hora composta de centenas de milhares de horas, na adulteração intencional da aritmética – uma adulteração que não nos faz párias à mercê dos polícias dos costumes. 

Nessa demorada hora extraordinária composta por incalculáveis extraordinárias horas, houve alguns intervalos que conferem a nobilitada hora que é a nossa morada. E outras, sublimes, que cresceram por cima das ameias do castelo para as anotarmos num bloco de notas que é segredo, arrumando com as mãos diligentes as estrofes que elas verteram no opulento regaço em que nos amparamos. Esse regaço que é do tamanho de mares inteiros.

Estas são as horas extraordinárias que não têm valor. A embocadura onde arpoamos a carne que o tempo deixa passar. As horas, algumas, tatuadas nas rugas que nos avivam a maturidade pendente. Mas extraordinárias, tão extraordinárias horas são estas que ditamos, à revelia da modéstia, que seriam horas heurísticas para quem, por fora de nós, as pudesse angariar.  

 

30.5.23

O fazedor de sismos

Tindersticks, “Marbles”, in https://www.youtube.com/watch?v=19Eu1tDnQn4

Como se desmontam os demónios? Como se contraria a insanidade que amanhece com a noite e se perpetua nas veias esquecidas? Como se esconjuram as cicatrizes que são um mapa no corpo estremunhado? Como se antecipam as didascálias bizarras que murmuram no feitiço dos sonhos?

Usava o dia com a usura do costume. Não se intimidava com a invocação da consciência: a austeridade fê-lo à prova de dores, até das dores de consciência. Não lhe contassem fábulas incandescentes com almas errantes e outras à procura de conforto. Ou encenações com unicórnios pelo meio, que os seus fautores não desistiam de fidelizar os mitos. Pudesse a sua insensibilidade ser medida em ouro e não havia dívida externa a pesar como um garrote sobre o país vindouro (costumava lamentar-se, na intimidade do silêncio).

Não eram os muros que o incomodavam. Sempre houve muros a apartar as pessoas, porque haveria esta era de ser de desmuros? Alguém contrapôs: o muro de Berlim já não existe e todo esse simbolismo é mais do que uma metáfora. Mas havia outros muros, os muros invisíveis, e esses estão tatuados nas mentalidades que não mudam por decreto (apesar do voluntarismo e da – autoproclamada – bondade dos engenheiros sociais). Esses são os muros que não se transpõem, que não se abatem. 

A menos que um sismo fosse tão preventivo que os muros fossem dissolvidos numa maresia de novas mentalidades. Era preciso formar um fazedor de sismos. Era preciso que desmontasse os arquétipos para obrigar as pessoas a pensar, elas que não estão habituadas a fazê-lo e confiam, por omissão ociosa, nos autopropostos pensadores da comunidade. Era preciso convencer as pessoas que estes sismos as obrigam a peregrinar interiormente para saberem as extremas que perdem bússola, para descobrirem onde se recolhe a âncora e deixar a embarcação navegar por autorrecreação. 

O fazedor de sismos podia ser tomado como um anjo exterminador, o escultor da nova civilização, os dedos impregnados de tinta-da-china a deixar poemas à sua passagem nas paredes contumazes da cidade, para que as pessoas amanhecessem e confiassem que estavam num lugar diferente, com o sol e as nuvens e a chuva de sempre, mas sem a injúria do mundo de antigamente. Porque o fazedor de sismos se contorcia, em repetidas ondas sísmicas que subiam na escala de Richter, de cada vez que ouvia um conservador apregoar que antigamente é que era bom. 

29.5.23

Amanhã, a tempo do furacão

Sigur Rós, “Rembihnútur”, in https://www.youtube.com/watch?v=tHabcP2CcGw

O sonho português é comer camarões, deixar crescer um bom bigodinho, viver bem a vida, ir à praia, apanhar um solinho. Essa é a minha versão de vencer na vida

Um artista, da mesma nacionalidade, de má fama.

Princípio geral das despreocupações: fita o horizonte, ele há sempre coisas piores no cardápio das divindades. Não é ser guru de autoajuda, que essa desarte fica para quem não encontrou outra maneira de se fazer à vida (o que vale para os soi-disant gurus e para quem deles se socorre, como se fossem a derradeira tábua de salvação de uma vida que não precisa de salvação). 

Amanhã vem a tempo. Vem sempre a tempo. Não sejam gastas lágrimas que sintetizam a angústia desembaraçada que, à noite, pinta o céu com a negrura que é típica da noite. Está à vista de todos: a noite é um vulto que se abate sobre o dia, e em particular sobre as pessoas, sem que outros significados possam passar a alfândega dos sentidos ou que uma qualquer metáfora da vida adeje sobre a dita. Depois da noite, ciclicamente, até contra as piores desesperanças dos profissionais da amargura, será o domínio da manhã. A menos que arranjem pretexto para verter uma tela hedionda sobre a manhã (por exemplo: a manhã interrompe o sono), situem-se antes no hemisfério heurístico.

Para que não sobrem equívocos, o princípio geral das despreocupações não recomenda uma ilusão anestésica. O mundo tem lugares e pessoas que não são recomendáveis. Não é difícil arregimentar provas que atestam os postulados dos pessimistas antropológicos (e de outros que alargam o campo de análise). Às vezes, o analista é o primeiro a não se fazer recomendado. Não se aconselha que caia um manto de fingimento. Entre todos os males que campeiam, cabe-nos a destreza de não capitular para não sermos reféns de uma metafórica noite perene.

Por exemplo: a simplicidade. O não arrastar os pés para um voo lunar sem combustível, para depois o despenhamento não ser fragoroso – já que não se leva arnês. O libreto é feito à medida. Num equilíbrio entre o sufrágio das iridescências que se sopesam contra a embocadura pútrida onde o mundo se hasteia. Tomar a medida por defeito não é defeito. É pressupor as coisas como são sem as elevar a uma potência exagerada e desigual.

Daí a predição do artista: descontando o estigma da generalização, o cidadão realiza-se na modéstia de ter camarão para petiscar, agilizar a estética a bordo de um bigode atávico, acastanhar a epiderme na praia, bendizendo o astro-rei. Em suma, levando uma vida de bem viver, com toda esta modéstia que é sinónimo da maior grandiosidade que temos para ser.

26.5.23

Não apanhes o TGV que perdes a paisagem (short stories #425)

Jules Maxwell & Lisa Gerrard, “Aldavyeem (A Time to Dance)”, in https://www.youtube.com/watch?v=fTID-V4dY-o

          Dizem os núncios, a cavalo da proverbial sabedoria encerrada nos compêndios empoeirados: quem se apressa acaba por perder o mandamento do tempo. Esses acabam reféns da contumácia. Tudo desfila a uma velocidade vertiginosa, tornando as imagens num borrão que desagua num terminal sem saída. Não se moderam no apetite de tudo e ficam com as limalhas de um nada que levemente arrepia as mãos. Se fossem outras as suas intendências, cuidariam de mecenatos diferentes. A curadoria de um museu gratuito (podia ser o museu do futuro). As páginas de um livro, emolduradas numa parede significativa. Uma música (se fosse possível escolher uma música só). Um lugar tatuado na pele. A confissão das desproezas e a vaidade inerente. A costela de hedonismo, destruindo a depreciação da palavra – encontrando, até, suserano para as coisas mais frívolas. O trabalho de campo, para descobrir as paisagens à prova do TGV que reduz o tempo a uma frágil cápsula à mercê do acaso. De outro modo, os cuidadores do tempo moderno conspiram contra a paisagem que se senta à frente dos olhos dos seduzidos pela voragem com que tudo passa na tela. Quando dão conta, o tempo já vai avançado, a caminho da decadência. Não conseguem sonhar as paisagens que perderam. Não conseguem atestar quantos anos foram atirados ao labirinto sem porta da saída. Combinam entre si a mentira – e mentem ao tempo, sem saberem que estão a autoinfligir uma mentira; e só muito mais tarde, depois de todas as noites mal dormidas, intuem os danos deixados pelo corrupio de mentiras. Devia haver uma lei para limitar a velocidade do TGV. Nem que fosse preciso um novo batismo ao comboio que nos leva. Deixaria de ser TGV. Mas seria um comboio profícuo. E nós, teríamos como destino um cais a favor. 

25.5.23

Never mind

Keren Ann, “Lay Your Head On”, in https://www.youtube.com/watch?v=91g9xqh4qU0

As máquinas percutem a pedra, incessantemente. O ruído ecoa na boca, como se houvesse um esgrima por dentro do corpo e a carne sofresse repetidos abalos sísmicos. As pás remidas travam o vento contra a sua vontade. Mas é o vento que sobressai, como as pás fazem questão de ostentar. O corpo é uma pedreira inteira.

Como pode haver quem odeia a manhã?

Tomava a interrogação como mote. A manhã; a inauguração do dia (se descontada for a noite, que para efeitos cronológicos inicia um dia, mal atravessa o equinócio da meia-noite). Quem pode atirar insultos à manhã, só porque ela irrompeu e atirou lava para o sono interrompido? Mal sabem os que tardam em se libertar do amolecimento que a noite não é um deserto por onde apenas erram os boémios ou os que, à mercê de uma angústia órfã, tirocinam a insónia existencial. Talvez prefiram trocar de lugar com os que não usam a noite para dormir e a atravessam no lugar dos que fazem da noite jornada de trabalho.

É próprio do lugar-comum: muitos não estão satisfeitos com o que têm. Não chegam aos mínimos de lucidez para entender que o oposto amplifica o desconsolo.

Em vez de um surf mórbido nas páginas das notícias cheias de depressão, deviam encontrar as avenidas bucólicas onde as nuvens negras metafóricas não têm reservado direito de admissão. Em vez de cançonetas que não saem do ouvido, viciando as pessoas na iteração que exaure o sangue, deviam frequentar o teatro, recitar poesia ao deitar, dar ao sexo o que o sexo tem para dar, esconjurar as miragens que dissolvem o paradeiro.

Soubessem menosprezar as diligentes provocações, fingindo, a bom fingir, que habitam outra galáxia ou que as provocações vieram bater à porta errada (“mão morta, mão morta, vai bater àquela porta”). Soubessem não assinar no papel amarrotado onde se enquistam as almas beligerantes. Até serem mecenas de uma constelação nómada que inventaria os lugares mil, em vez de serem arrastados para uma maré forasteira. 

Até dizerem, com o garbo de quem se sabe ileso às instigações, never mind.  

24.5.23

O enforcado por uma unha negra

DIIV, “Doused”, in https://www.youtube.com/watch?v=KI79GPXAICM

Queria uma homenagem e acabou enforcado. As medidas conseguiam os seus deslimites, quando tudo à volta se esboroava numa vontade fracassada. 

Um dia confidenciou: “gostava de ver o nome imortalizado na toponímia.” Fez os impossíveis por chamar a si a visibilidade. Era como se sentisse que a sua grandeza transbordava da pessoa que era. Ou que a pessoa merecia outra dimensão, como se reclamasse a seu favor uma galáxia inteira e todos fossem seus satélites. Nesse dia, a confidente segredou, em forma de discreta advertência: “cuidado, depressa podes perder a noção dos limites. E depressa vens do céu ao inferno.”

Não se importava de não ter direito ao anonimato quando andava na rua. Sentia um prazer indiscritível ao sentir as outras pessoas a sinalizarem o seu reconhecimento com olhares sintomáticos – ele notava, com deleite, os olhares levantados do chão como quem reconhece o rosto com que se cruzam. Contra a apatia geral. Um serviço público. Há pessoas que só por existirem são um inestimável serviço público. Todos os que levantam o olhar e o reconhecem é como se manifestassem o agradecimento por ele existir. 

De outra vez, outra pessoa do seu círculo quis temperar os excessos de autocontemplação: “tem cuidado, nem tudo é interpretado pelos outros de acordo com a tua grelha de análise.” (Era um incorrigível sociólogo, este conhecido.) Não se intimidou. Ele não se cansava de olhar para o seu espelho metafórico. Para além do seu espelho metafórico. Como se precisasse de encontrar novas constelações que albergassem todas as ramificações do seu eu. 

Um dia, foi o descalabro. Na enésima presença na televisão, perdido entre a infinitésima vez em que usava “eu” para adornar as frases, perdido na encruzilhada da sua gongórica opinião sobre tudo-e-mais-alguma-coisa, foi atraiçoado por um deslize imperdoável, apontando o dedo ao interlocutor que o provocou num debate de ideias sobre a inevitável atualidade (a maldita atualidade): 

Sobre esse assunto, não duvide do que digo. É doutrina. Doutrina com o meu lacre. E eu não minto. Não minto! Que me lembre, nunca menti. Mesmo que este seja o mais aberto descaro que proclamo, o perjúrio cai sobre si, que não lhe admito lições de moral e não demora muito estou a encomendá-lo ao mais respeitável raio que o parta.

Quanto findou a colérica intervenção, pouco faltava para a jugular explodir numa erupção feérica. Uma gota de suor escorria velozmente pelo rosto abaixo, prestes a invadir o canto da boca que ainda estava trémula. Caiu em si. Esteve a um triz de pedir a desculpa, aproveitando o silêncio atónito da moderadora e do interlocutor, convertido em inimigo pela cólera que o invadiu. Mas não podia pedir desculpa. Era dar parte de fraco. E ele não podia dar parte de fraco. 

Nunca mais apareceu nas televisões e nas estações de rádio. Nunca mais os jornais lhe pediram a opinião de perito. Aqueles vinte irados segundos fizeram a diferença entre a pública condição que tanto considerava e o enforcamento – em público, como tinha de ser.

23.5.23

Magistério (lotaria)

Ólafur Arnalds, “Fyrsta” (Living Room Songs), in https://www.youtube.com/watch?v=SDezzDQVy6M

Dizem as modas de serviço, já quase não há nada para aprender. Se há tão pouco para aprender, haverá o tanto mesmo para ensinar. Tomara que os silogismos fossem complexos, mas a aprendizagem nunca se divorciou do ensino. Até que as modas de serviço ensinam o que ensinador nenhum consegue ensinar: aprender com a ajuda de quem ensina está a perder cabimento e os novos aprendentes sabem fazer o seu caminho entre os tortuosos (outrora) caminhos das ciências. Os que ensinam podem-se dedicar a outra arte. Há tantos autodidatas que o magistério está em vias de extinção.

O golpe de asa foi a inteligência artificial. Pouco importa o adjetivo que vem colado a esta inteligência. Pouco importa: os que nunca andaram atrás da inteligência, mas apenas de uma fechadura por onde entrasse a esperteza, mal sabem o que é a inteligência, muito menos a sabem adjetivar. A menos que as convenções tenham mudado e agora o artificial seja melhor do que a sua antítese. Deve ser uma das sínteses formuladas pela inteligência artificial, com a bênção dos apedeutas.

Quando tudo é tão acessível, tudo está tão à mão de semear, as pessoas não desconfiam, não tergiversam? Não se propõe uma teoria geral da desconfiança, nem que ela se abrace a coisas desprovidas de complexidade (como se a simplicidade fosse uma conspiração para premiar os poltrões). Às vezes, a simplicidade é o mais difícil. A simplicidade instrumental é apenas um recurso para premiar o menor esforço. É oportunista.

O sumo do conhecimento passou a ser um fast-drink emborcado com a bruteza de um shot, de um trago só. Como se os aprendentes se embebessem em doses concentradas de conhecimento. Julgam que sabem muito e de coisas diversas. Mas sabem pouco mais do que nada em cada domínio. O precipício entre os dois lugares é o lugar sacrificial onde, com a ajuda da sobranceria, intentam empurrar os demais, virando o estatuto do avesso. O magistério tornou-se um prolongado sacrifício. Com doses abundantes de desinteresse (e o interesse pelo quê, afinal?), autoconvencimento de um conhecimento apenas inflacionado, com a pesporrência de quem pouco sabe e confronta o ensinador – porque, afinal, este é dispensável e sabe menos que o aprendente. Uma lotaria, com assíduas visitações de insulto à inteligência.

Um dia destes, os lugares de uma sala de aula ainda vão ser trocados.

22.5.23

Sonho alto (corsário)

Expresso Transatlântico, “Bombália”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q1UDt5TfTa8

Lobo mau, lobo mau: assim arranco o coração com as mãos, o sangue todo como seiva dos fantasmas que se escondem na brisa das sombras. E tu, lobo mau, sequestras o mundo que não está de atalaia. Os penhores da carne são oferendas aos forasteiros sem caução. Toda esta luz clara fere a alma. E tu, lobo mau, passas invisível entre os rasgões do vento.

Se ao menos as largas vidraças não fossem baças, talvez os amanhãs não fossem juras sem consentimento. Dizes, lobo mau, que os amanhãs são promissores. Desconfio que é uma anestesia que insinuas junto dos distraídos, para juntares à tua volta um séquito de gente esfaimada do seu próprio sangue. E depois, quando as marés se sublevam e destroem os castelos de areia, sobram os poemas que adoçam a boca, a mesma boca que já não os sabe entoar de cor. E tu, lobo mau, rasgas a pele porque sabes que os sonhos estão exorcizados. 

Sonho alto, este. Como o promontório onde se armam as cristalinas águas que dão alimento à sede. Os prístinos dias convocam-se contra a madurez; lobo mau, dizes que esta é a meia-idade, e eu aplaudo a ideia: ainda tenho a outra metade para meus dedos desenharem as fronteiras e as desfronteiras. Não me retiras esta bucólica enseada onde me sei exilado. Esses sonhos são tempestuosos, como se fossem o fingimento da vida que se entretece no queixume de quem se desvia de sobressaltos. 

Dizes que sonho alto, lobo mau. E sonho. Muito alto, como se fosse um atleta com mais de dois metros, ou talvez uma montanha que sobe além dos dois mil metros, e abraço em mim os êxtases que emprestam corpo à vida – ou como o tenor, com a sua voz grave, o pano de fundo para a voz-trovoada que fala para longe. Sonho alto como se por dentro do sono dormisse acordado. E às raízes do sonho arrancasse a ossatura de que preciso. 

Se sonho alto, os sonhos são cúmplices. Materializem-se ou não, encontrem diagnóstico em fragmentos do passado, ou não. Sabes, lobo mau: não és intimidação que se abata sobre o meu consolo. Porque sei que estás banido dos sonhos e por isso é alto o sonho que traduz o sonhar alto.

Subo às asas do sonho alto para me entronizar na invisibilidade de um lugar que sabe de que cor é a carne que trago vestida. Como se fosse o melhor dos corsários.

19.5.23

No paraíso todos são desempregados

Queens of the Stone Age, “Emotion Sickness”, in https://www.youtube.com/watch?v=LIejWJ1rsgU

Na terra dos pesadelos, o gelo aquece a que temperatura? Ou: se encontramos uma encruzilhada sem toponímia, seguimos pela segunda escolha (para reprimir os instintos, como ensinam os zelosos guardiães dos bons costumes)? Arranca-se o sal às pedras para descobrir que a montanha já teve mar à ilharga? Os mares recuaram e foi assim que o planeta se pariu (e descendemos todos de peixes)? Dizem que só somos plenitude quando desembarcamos num cais que deixa entrar aveludados feixes de luz pelas entranhas das janelas e reparamos que uma placa no apeadeiro confidencia o paradeiro: “Paraíso”.

Pode ser o céu. O céu quando morremos (não interessa saber se é apenas metáfora, outra figura de estilo, ou se o céu é literal). Supõe-se que as apoquentações não foram admitidas a concurso quando se aprecia a validade do céu. Não é ao acaso que o paraíso é o paraíso. Se o paraíso fosse semelhante aos lugares terrenos que acompanham as vidas enquanto duram, mais valia ficar vivo; ninguém tinha esperança na morte, porque a morte (é o que dizem as efabulações) não é morte: é a vida que nunca conseguimos viver nos lugares terrenos e enquanto a vida levou a trela dos sentidos. Pelo caminho, o céu pode ficar embaciado e ninguém sabe se soa a paraíso.

Alguém sugere que devemos esperar pelo céu para conhecer deus em pessoa (descontada a contradição de termos). Até os ateus não perdem nada, pois nessa altura só podem prestar contas aos seus pares que ocupam um pedaço do céu por sua conta. Poderão dizer, em meritório estribilho: o céu é seu. Alguém insinuou que deus, como está desempregado, pode ser a tutela de todos os que ganham bilhete para o céu. Se deus trabalhasse, nem a omnisciência lhe valia.

Há também quem proponha que no céu só há desempregados. Ou, dito de outra forma: o céu é o lugar onde todos merecem a segunda reforma. Não há mercados, mercadorias transacionadas contra o dinheiro que se aufere em contrapartida do trabalho, nem marxistas, nem capitalistas suicidários (aposto que vivem em espaços contíguos, por divino castigo pela militância diligentemente irritante), não há futebóis inflamados, nem querelas entre eruditos que alimentam as querelas com toda a erudição, nem hinos que agarram a mão ingenuamente nacionalista ao peito, nem trofeus de nações contra nações (a guerra por meios pacífico-desportivos), nem patetas ou idiotas disfarçados de patetas, nem (dizem – mas não sei se hei de crer) mentirosos. 

Mas se o céu é o paraíso, por que precisamos da extinção da vida para merecer essa morte?

(Registo de interesses: acredito no céu para efeitos meteorológicos e astronómicos)

18.5.23

Abaixo as arengas

Gaz Coombes, “Walk the Walk” (Live at the Sheldonian Theatre, Oxford), in https://www.youtube.com/watch?v=diaLVeGHSLU

Mandam-se as vozes tonitruantes para a parada. Pede-se que esperem. Pede-se que se agarrem firmes na espora da desonestidade intelectual, que ela vai ser armamento assíduo. Exige-se fidelidade canina: têm de estar preparadas para serem curadoras de quem as mandatou. Façam as vezes de testa-de-ferro. Como os soldadinhos metidos em comboios que os levam para a carnificina. E eles, uns enganados e outros iludidos, nem sabem que é a viagem para a morte. Mal menor, que deixam de arengar.

Nas arengas que são o apreço não se fala de dar o corpo às balas num desprendimento ensandecido. Apuram-se os eleitos para as arengas que estão por vir. Encena-se tudo com aguarrás. Dissolvem-se as manchas de outrora com o melhor dos diluentes. Se sobrarem páginas inapagáveis, é melhor haver um recurso expedito, uma manobra de diversão, um bocejo que distraia, a telúrica mudança de assunto para que o assunto não vá morrer nas páginas resgatadas que atestam uma contradição entre dois momentos. Se for preciso, verte-se o perfume que as andorinhas exportam do Norte, só para anestesiar as circunstâncias. E manda-se tudo para o alfaiate, para reciclagem da memória.

Salvemo-nos das arengas onde fruem os meirinhos de gente maior que não tem coragem de dar a cara pela suas causas. São os procuradores, escondidos nos bastidores, e seus são os embaixadores que se prestam por meio soldo e a promessa da escada da glória. Estas são as arengas que se dispensam. A fartança de ilusionismo retórico, o recurso à palavra gongoricamente interminável que hiberna os outros, a insolência do pretexto disfarçado de argumento, os garfos que metem pela garganta abaixo dos oponentes, a omissíssima natureza de que são feitos.

Abaixo estas arengas que adulteram os areópagos onde a parlamentação devia ser cheia de lisura, onde os participantes deviam ser instruídos da dignidade de o serem. Nestas arengas, o máximo que se alcança é a desaprendizagem; o assíduo insulto à inteligência dos outros; a barbárie do impudor que cobre as mentiras com um denso véu de re-verdade. Até que a noite peça o sono e os sonhos avivados mintam as mentiras piedosas, as que desmentem as arengas instituídas que transfiguram o desejo de saber do outro através das ideias. Devolvendo ao ouro a sua dentição perfeita.

17.5.23

Bom Partido

Björk, “Big Time Sensuality”, in https://www.youtube.com/watch?v=-wYmq2Vz5yM

(Mote: um partido chamado Iyi Parti, na Turquia, que aparece nas notícias traduzido para Bom Partido)

Bom Partido – o nome de um partido assim inventado para verter um refresco na paisagem política. Um momento heurístico em que um partido daria o mote para a política deixar de ser o que se tornou a coberto do antagonismo de ideias e de programas. Pois depressa o antagonismo se transfigurou em confrontação, da política se dizendo que, enfeudada em partidos, se tornou a forma de disfarçar guerras por meios só aparentemente pacíficos.

O Bom Partido não precisaria de programa. Só tinha de convencer os eleitores que era bom. Os eleitores que chegassem a bom porto por antinomia: aquele era o único partido que era bom. Sem que fosse preciso ao Bom Partido verberar os adversários: como bom partido, seria só elogios aos adversários, de uma ponta à outra, sem exceções. Sem que a enxurrada de elogios fosse uma demarcação do Bom Partido. A capacidade de elogiar os outros faria a diferença. Seria a sua demarcação. A forma de desarmar os adversários. Estes, ou jogariam pelo mesmo estalão (e se todos o fizessem, a política tornar-se-ia uma entediante procissão de elogios mútuos), ou, se o não fizessem, situar-se-iam como partidos maus. 

Caberia à consciência (ou apenas às simples preferências) dos eleitores o demais. Os que acreditassem na semântica da bondade política, votariam no Bom Partido; ou, encantados com a interminável procissão de elogios mútuos, acabariam por votar no partido que sempre votaram, dissolvendo a vantagem comparativa do Bom Partido. Os que não caíssem no logro da ingenuidade, filiados no incorrigível pessimismo antropológico, cientes que a bondade alardeada era um ardil, continuariam a votar em partidos que não alinhassem na adulteração da política. Já os gurus do marketing, os possíveis inventores do Partido Bom, esfregariam as mãos de contentamento pelo rasgo de reinventar a política que passa no palco dos partidos. Outros, apegados à realidade do chão cheio de pregos, diriam que um partido que se chama bom é porque sabe que é o contrário e precisa de o negar, aldrabando os que caem no logro.

Para o Bom Partido não haveria lugar a diagnósticos catastróficos. Tudo seria paradisíaco, mesmo que não passasse de um disfarce. O Bom Partido podia ser uma muleta do partido do governo (ou o seu idiota útil). Se assim fosse, talvez se esvaziasse a agenda potencial do Bom Partido: se vivemos num paraíso, o que há para melhorar? Ou podia ser um apóstolo da crítica construtiva. Anotaria as fragilidades que precisam de medidas corretivas ou de políticas de fundo. Oferecendo-as ao partido do governo. E, como Bom Partido, estaria a proclamar, sem rodeios, que boas são as suas medidas. Por exclusão de partes, para que o bom entendedor se faça entender.

(Trabalho de casa feito: o Bom Partido é um partido de extrema-direita. À consideração do eleitor (turco).)

16.5.23

Os minutos pela metade (ode às metáforas)

New Order, “Blue Monday” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=XXui9GiDdf8

Olhas por esta porta como se ela fosse um demónio que trespassa as dores do mundo. Se fosses ao convés das ideias, de lá virias saciado com tanta abundância. Serias surpreendido com a matéria-prima copiosa e de ti desconhecida. Talvez chegasse para deixares à porta a desconfiança dos outros. Eles não são os demónios que, açambarcado pela desconfiança, julgas.

Em tua defesa, argumentas que a experiência cimenta a legitimidade da desconfiança. Não devias ser refém do passado. Não deves aceitar que todos são uma amostra dos poucos que te deixaram cicatrizes que o esquecimento não consome. Faz uma experiência: muda de lugar, ou muda de pessoas que frequentas, só para perceberes se são de outra genealogia. Os forasteiros não são sempre os algozes que se aprisionam a uma moribunda condição.

Pode ser que sejam as metáforas a emprestar outro chão aos lugares. Delas serás servil, para de uma servidão sem o jugo da palavra levantares outra cortina sobre o palco que atrás dela se esconde. Até que os minutos possam ser a bengala de uma reinvenção do tempo. Em vez de contarem pela totalidade dos segundos convencionados, farás dessa medida o que dela julgares oportuno. Se queres retesar o tempo entre as mãos, não deixes que o minuto se extinga ao fim de sessenta segundos. Noutros preparos, podes querer esgotar a medida do tempo sem que ele se esgote por dentro das baias que o configuram. É quando apetece que os minutos fiquem pela metade. Ele há também geografias do tempo que não merecem lisonja. 

Quem te instruiu na profecia das mãos calejadas não sabia que os calos, ou até as mãos, podem ser apenas metáforas escondidas em compêndios feitos de páginas bolorentas. Ou um carrossel enferrujado que se deita sobre as planícies, até colher todas as flores e debulhá-las no parapeito do medo, dissolvendo-o a matéria vã. E tu agradeces às metáforas que desenjoaram o tempo.

15.5.23

O tribunal dos acostumados

A Flock of Seagulls, “I Ran (So Far Away)”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIpfWORQWhU

Falava-se de oportunidades. Os degraus escondidos eram procurados pelos braços dos acostumados. Sem que houvesse cólera por registar. Os amanhãs que esperavam diziam-se ambiciosos.

Houvesse oratória empenhada: os de todo o lado parlamentavam com dignidade. Não havia proibições. Não havia vieses que pudessem boicotar a fala. Aprendia-se. Aprendiam, uns com os outros. Por isso aceitavam parlamentar. Chamavam-lhe o tribunal dos acostumados.

Não que houvesse inércia, para ao tribunal chamarem tribunal dos acostumados. Cada um regia-se pelas regras que estatuía para si mesmo. E respeitava as regras dos outros. Tudo era sobre equilíbrios. Quando havia conflitos, eram os próprios que os resolviam. Promoviam as tábuas de entendimento, sendo os arquitetos que limavam as arestas.

Não havia montarias para aprisionar os dissidentes. Abriam-se as portas do tribunal, mas eles não eram obrigados à conversão. Viriam, se quisessem. E se quisessem vir, podiam sair com a mesma aura de dissidentes. Podiam falar. Podiam discordar do código de conduta. Podiam formular as interrogações que discutiam os esteios dos acostumados. Podiam ser párias sem serem isolados, nem eram convidados ao exílio.

Todas as portas eram permeáveis. As paredes estavam repletas de estrofes dos anos idos, como se fossem a enciclopédia dos costumes e dos descostumes. Todos contavam por igual. Até que alguém interrogou se a paridade entre costumes e descostumes não era uma igualdade do avesso. Deixá-los no mesmo patamar era ultrajante para os embaixadores dos descostumes. Não era por acaso que eram descostumes. Não podiam ser nivelados pelos costumes: por esse andar, um dia destes já não havia diferença entre costumes e descostumes. Isso só podia interessar aos acostumados. A paridade podia acontecer com o esvaziar dos descostumes, silenciosamente transfigurados em costumes.

Foi o tribunal dos acostumados que, num rasgo de lucidez, travou a tentativa de tornar costumes e descostumes pares. Ninguém precisava de ensinar ao tribunal dos acostumados o que era decente. Deixar que os costumes colonizassem os descostumes era indecente. Para os descostumes e para os costumes. 

12.5.23

Quem quer um unicórnio?

The Murder Capital, “Ethan”, in https://www.youtube.com/watch?v=5v76Sk-FeV4

As lantejoulas falavam por ele. Não se dissesse que a extravagância não era a sua gramática: pudesse cumprir com os quesitos da simplicidade e era como se fosse forasteiro no seu próprio lugar.

Fazia da extravagância o verbo luminoso que enchia as veias de sentido. Não precisava de solenidades. As lantejoulas, ou uma indumentária que deixava boquiaberto quem passava (a menos que fosse um seu par), era a marca distintiva. Mas não era fácil. A extravagância era atestada pelo olhar dos outros. Era assim que se apresentava, só era extravagância para os outros. Nunca idealizou a extravagância como a casa de partida. 

Um dia, quis virar a extravagância do avesso. Teve de ir às compras, em primeiro lugar. Antes confirmara, numa breve indagação ao guarda-roupa, que não tinha roupas que não pudessem ser certificadas como não extravagantes (o eufemismo para a palavra que mais odiava: normal). Comprou a roupa que pudesse ser considerada “normal”. Não foi fácil decidir-se. Enquanto zeloso observador das pessoas e dos costumes (aquela costela sociológica que nunca teve cumprimento académico), não era fácil esboçar o protótipo da moda masculina. Não lhe interessavam as tendências abençoadas pelos gurus da moda: são raras as pessoas que se seguem por esses mandamentos. O observador meticuloso das pessoas e dos costumes distinguiu muitas variedades de vestir. Decidiu-se por uma, sem grandes demoras. Assim como assim, não era representativa do seu estar. 

Nesse dia, sentiu-se extravagante pela primeira vez. É como se estivesse numa pele não sua. Se olhasse para um espelho, não se reconheceria. Pela primeira vez em muito tempo, o porteiro do prédio não olhou para ele com a comiseração de que, no seu entender, os extravagantes são merecedores. O dia parecia não acabar. O mal-estar colonizou o corpo inteiro, como se tivesse assanhado uma alergia contida em hibernação. 

E teve a noção do que era representar o foragido que assoma contra a maré dominante. Não na sua pele habitual, mas contracenando num sangue que era forasteiro. Por se ter sentido extravagante pela primeira vez, em muito tempo.

11.5.23

A frustração do ministro das finanças da Holanda (texto um bocado marialva, mas só como recurso estilístico)

Queens of the Stone Age, “Crucifier”, in https://www.youtube.com/watch?v=7iOS1mNyvoc

(Advertência: o ministro das finanças da Holanda que entra nesta história não é o que está em funções)

O ministro das finanças da Holanda lembrou-se de parodiar os nativos do Sul da Europa que, de acordo com a sua eminente visão sociológica, gastam dinheiro a mais em mulheres e vinho (verde, ao que consta). Foi deste selo mal lambido que se lembrou para justificar o estereótipo de prodigalidade nas contas públicas que assolava os países do Sul da Europa quando a União Europeia vivia sob o estigma de (mais) uma crise. E ele, vindo de um país impecavelmente disciplinado, queria apostrofar os esbanjadores do Sul da Europa, que deviam aprender com a retidão que se pratica, sem desvios, por aquelas protestantes latitudes.

Ninguém cuidou de esquadrinhar o currículo do ministro das finanças da Holanda – não o currículo profissional; a sua vidinha, tão vidinha como a vidinha do comum dos mortais, com a diferença de, uma vez na vida, ter abocanhado tão relevante sinecura e, por mercê do facto, a sua voz ter sido propalada aos quatro ventos sobre uma Europa derruída.

Aqui vai uma teoria com o beneplácito da especulação, pois esta teoria não tem pilares que a alicercem como tal. O ministro das finanças da Holanda foi um mal-amado toda a vida. Se fossem à dark web da sua vida, encontrar-se-iam páginas de desamores e intensos momentos onanistas por não encontrar correspondência com donzelas que pudessem saciar os prazeres carnais. O ministro das finanças da Holanda embebeu o catecismo protestante e não bebia álcool às refeições, a menos que houvesse ocasião especial e a solenidade puxasse a perna para o hedonismo, metendo um parêntesis na austera forma de vida protestante, ocasião em que se vingava de tudo o que lhe apeteceu beber mas a castração interior impediu.

O ministro das finanças da Holanda é aquele frustrado que não conseguiu ter sucesso entre o sexo feminino, servindo-se dos prostíbulos (legais no seu país) para se aliviar de outras repressões, cuidando, ato contínuo, de endossar o alívio da consciência para os bárbaros povos do Sul da Europa, eles abertamente marialvas, misóginos e propensos à frequência de meretrizes. Descobrir-se-ia, se a investigação alusiva tivesse sido empreendida, que o ministro das finanças da Holanda tinha em sua posse um estudo sociológico com credenciais acima de qualquer suspeita que provava o sucesso económico dos bares de alterne nos países latinos em que são proibidos, por comparação com a exiguidade de resultados económicos dos lupanares legalmente instituídos no seu país.

O ministro das finanças da Holanda babava-se ao passar ao lado de uma loja de vinhos. Espreitava pelo canto do olho e à noite sonhava com orgias regadas a dispendiosos vinhos franceses. Os outros é que arcam com a má fama, enquanto o ministro das finanças da Holanda, e os seus patrícios que assinaram por baixo a descoberta altamente sociológica, fazem de conta que são querubins, modelos de virtudes que podem cobrar as desvirtudes dos mal-afamados povos latinos que só pensam em coisas hedonistas.

Nós por cá, temos um provérbio para avivar a memória esquecida do ministro das finanças da Holanda: não olhes para o que eu faço, olha para o que eu digo. 

Já ao défice de consciência, o ministro das finanças da Holanda disse nada.

10.5.23

Uma vacina para toda a obra

Slowdive, “Star Roving” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=Aw3qv0ltEmY

Fizesses ioga, ou fosses a uma casa de fados (se tivesses a garantia de que fadistas castiços estavam no plano da sala), ou, apenas, fosses exílio por dentro da tua pele, e tu, pastor de ti mesmo, não precisavas de exibir o patíbulo onde te sentavas. 

Fosses ao cinema ver um filme sérvio sem legendas, ou ao mercado central só para ouvires os pregões das varinas, ou então, em última instância, passeasses vagarosamente junto ao rio para perceberes as estrofes hasteadas pelo odor tão característico do rio como se fossem o hino a que nunca aderiste.

Fosses um vulto escondido, ou juiz em causa alheia, hipótese que manifestamente desagradava, fosses a encarnação de uma borboleta a aproveitar o corrimão da Primavera, ou o homem distintivo, cheio de superioridade moral para esbofetear nos outros e, todavia, assíduo visitante dos presbitérios para expiares os inconfessáveis podres.

Fosses o cimento de outras pessoas (não tivesses um pacto secreto com a solidão), fosses o improvável artífice de milagres não solicitados, ou apenas aquele peão que anda à procura de um tabuleiro para poder ser peça de um jogo.

Fosses o mecenas dos disparates que se amontoam no fio do horizonte, tu, caixeiro-viajante de causas improváveis, das causas que se desviam dos índices da popularidade, fosses responsável pelo inventário das frivolidades que matam o tempo, ou apenas mais um que se alimenta da indiferença em que todos vegetam.

Fosses o penhor dos vulcões submersos, estiolando as pálpebras cansadas que se deitam sobre o olhar em capitulação, fosses embaixador de algo por saber, ou candidato à toponímia se não tivesses um código de conduta que afasta a popularidade.

Fosses o âmago das matérias que curam as angústias, o esculápio que desamedronta as maleitas arrancadas à ossatura da sociedade, ou o penhor das palavras sem pré-aviso que se totalizam nas páginas impermeáveis à idolatria, e tu, baleia entre anões, à sua mercê, tão pequeno. 

Fosses a vacina em ti mesmo aplicada e terias como saber que os disfarces que aliviam a linhagem do mundo são de cepa pior. Fosses o lugar onde a vacina para toda a obra é forjada. E não precisavas de te exilar de ti mesmo.

9.5.23

Manobra de diversão

Faith No More, “Last Cup of Sorrow”, in https://www.youtube.com/watch?v=gjEbHBafvm0

Na biblioteca, nunca procurava livros na estante prometida. Errava por outras estantes, perdia-se no labirinto dos livros de que só saberia depois da existência. Lá em casa diziam que estava condenado a não passar da cepa torta: andava como o caranguejo, sempre para o lado, outra vez para o lado, até que o lado a que ia parar estava nos antípodas do lado inicial.

Não se apoquentava (de não passar da cepa torta). Não queria fazer carreira e, a crer nos exemplos dos que urdiam as piores conspirações para subirem na carreira, não era lugar que queria frequentar. Ninguém o convencia a ser cultor de uma especialidade, afunilando o conhecimento como se apenas houvesse aquele domínio do conhecimento. Dizia: “um perito de uma coisa só é um perito anão, amordaçado nos corredores estreitos desse conhecimento.” Não queria ser participante deste nanismo e ser refém desta mordaça. 

Quem conhecia a sua secretária sabia da desarrumação dos livros que quase não deixava uma nesga desimpedida para que a pessoa que se sentasse do lado contrário o pudesse ver. O apanhado dos livros empilhados era uma arca de Noé do conhecimento. “Um dia de cada vez, um livro de cada vez”: o lema que acompanhava a assinatura nos emails enviados. Hoje pode ser um livro de Sociologia, amanhã um de História, depois de amanhã outro de Filosofia das Ciências, ao quarto dia a Literatura Clássica, ao quinto (escolhido ao caso como dia de leitura lúdica) um roteiro de turismo para ver se decidia aonde ia de férias, ao sexto um livro sobre Biologia, ao sétimo um livro de Economia, ao oitavo um livro de Geografia – e assim sucessivamente.

Eram anos de carreira perdidos, porque nunca quis ser perito de um conhecimento apenas e continuava a acordar com a versatilidade a servir de condimento do pequeno-almoço. Não lhe pedissem planos. Ele era o primeiro a boicotar os planos que fossem da sua autoria: um dia acorda e descobre, à última da hora, desfazendo a maré pensada de véspera, uma leitura que não estava no programa. E assim foi fazendo o tempo, de leitura em leitura, anarquicamente, apenas com uma regra de conduta: não havia regras, nem as ditadas por ele e muito menos as que pudessem ser ditadas pelos outros, a açambarcarem a leitura. Apenas as manobras de diversão que o impediam de ser perito e o consagraram à abertura de espírito de quem se situava no ponto de intersecção de vários conhecimentos.

Que lhe chamassem caranguejo, por causa das sucessivas manobras de diversão que o atiravam constantemente para o lado e mais para o lado, não o importunava. Gostava de dialogar com os vários ramos do conhecimento. Sem querer, por não poder, ser erudito de coisa alguma. As cátedras que ficassem para os ambiciosos que não se importavam de conhecerem tão pouco.

8.5.23

A morte do artista (e o artista ainda não deu conta)

Love and Rockets, “No New Tale to Tell”, in https://www.youtube.com/watch?v=Bo3R3LBjDek

- As mangas arregaçadas, que me vou ao dia.

Era assim, intrépido e voluntarista, admirador do seu espelho e desconfiado dos outros (todos). E foi-se ao dia, e o dia, que se faça constar, não se intimidou com a promessa de pugilismo metafórico. O dia tinha de lidar com tantos eus angustiados e uns outros tantos autoconvencidos que nem sabia para onde se virar. O melhor critério – revelou o dia em circunspecta entrevista – era não ligar a ninguém.

O artista entrou de rompante nas arcadas da manhã. Deixaria logo meia dúzia de atónitos, não fossem eles conhecedores do artista. O espalhafato militante era como se fosse um objeto de desdecoração. Um deles, talvez num dia pouco dado a “conseguimentos”, deixou cair em semi-sussurro (que já era audível pelos mais próximos):

- Um dia destes vou-te levar à acareação com o dia, para ver se podemos continuar a acreditar no dia ou se tu és o mitómano na sala. 

O artista sentiu o vento dessas palavras a assentar na gola das costas, mas estava convencido que não eram para ele (não podiam ser). 

- Ah! vocês, meus caros, têm de pagar portagem para frequentar o dia. Eu sou o vosso cobrador. Se pedirem com insistência, serei generoso e concedo-vos o beneplácito da via verde, e gratuita, para exercitarem o dia sem outros constrangimentos que não sejam as vossas dívidas existenciais. 

(E enfatizou “dívidas”, para que os outros não confundissem com “dúvidas”.)

As pessoas falavam de sacos de boxe e de estrelas que só o seriam se aceitassem somar o adjetivo “circense”. O artista reunia os dois predicados e, para certas pessoas, simultaneamente. Ao menos, não o acusassem de andar sorumbático, como se tirasse ao dia a pele para com ele jogar esgrima e um esgrima à maneira de certos desportistas que preferem garantir o triunfo servindo-se de meios e métodos fraudulentos. Não interessava (bem entendido: que o artista não fosse propenso a depressões, das gratuitas ou das devidamente diagnosticadas; já menos, os meios e métodos fraudulentos dos catedráticos dos fins que justificam os meios).

Um dia, os outros prepararam uma encenação que, enquanto encenação, era apenas simbólica. Um brincadeira, se pedirmos de empréstimo o vocabulário pueril, com tantas incursões no ludismo. Fizeram passar um abaixo-assinado, contudo sem assinaturas (ó maldita hipocrisia: a maré negra que enxovalha os covardes), para o artista ser transferido para a delegação do norte. Nem quiseram saber do parecer dos do norte, só queriam desenvencilhar-se do artista – e lá teriam de apanhar com as dores de consciência depois de os do norte acusarem o toque centralista dos de Lisboa, que nunca têm em consideração os seus (do norte) interesses.

O artista ficou comovido. Os do norte teriam um tempo diferente pela frente ao poderem travar conhecimento com a sua pessoa; um astro-rei em forma de gente, para clarear aquelas existências com vários lampejos de grandiosidade – um paradigma a seguir e ele, de tanta grandiosidade que irradiava, não se importava da partilha.

O chefe, menos dado a estas coisas da ironia, depois de acusar os outros por “brincarem com coisas sérias”, chamou o artista. E nomeou-o chefe da pandilha restante.

O artista, sem saber, tinha morrido. E ninguém o convidou para o seu próprio funeral.   

5.5.23

Museu da esperança (short stories #424)

Os Poetas, “Despertar”, in https://www.youtube.com/watch?v=PdGx2y1Jkyc

          Encerram-se as sombras párias numa prisão sem lugar na pele. Expulsam-se as mágoas, gratuitas como são. Vestem-se de cor garrida os lutos insindicáveis. Protestam-se os que alardeiam a soberba de serem o que não são atrás de disfarces indigentes. Desarrumam-se os fantasmas que ferem as consciências distraídas. Doam-se à prescrição as consumições que povoam o medo. Escondem-se os corpos fendidos dentro da sua fragilidade, à espera que dois negativos somem um positivo. Desautoriza-se a mentira puída. Oferece-se o passaporte aos que tirocinam a carne viva dos outros. Amotinam-se as almas desembaraçadas contra os manuais de instruções. Expropriam-se os pesares que levedam o sangue. Descolonizam-se os rostos lívidos pelo penhor contínuo do passado. Reinventa-se o pecado, subtraído à cólera da censura social. Desamarram-se as algemas que degolam a liberdade. Provocam-se os contínuos das ordenanças, meros meirinhos costurados às bainhas da mesquinhez. Desembaraçam-se os sonhos que andam pela trela das cicatrizes, devolvendo ao mar o sal saqueado. Remediam-se as virtudes apenas quiméricas. Disfarçam-se as muralhas que apequenam lugares.  Ativa-se o pensamento desimpedido contra os déspotas disfarçados. Desenganam-se os profetas que deitam a mão a oráculos sem posse. Embaciam-se as tempestades futuras que são afins aos cemitérios sem aval. E aconchegam-se as lágrimas derramadas por cima das cicatrizes. Avivam-se os fiordes que amanhecem no friso da memória. Agigantam-se os nomes que não têm nome. Convocam-se apeadeiros estilizados nos sonhos sem redenção. Embeleza-se o dia com a urdidura das estrofes artesanais, no rendilhado da sensibilidade não exilada. Hibernam-se as farsas, acantonadas na arqueologia do futuro. Levitam-se os corpos nos rios andantes, que não precisam de pontes para saberem das suas margens. Congemina-se o palco que não sabe o paradeiro da angústia. Amaciam-se os calos legados do passado. E ousa-se a geografia terçada nos estiradores dos estetas da esperança. A esperança, é o juro do futuro.

4.5.23

Os anjos já não têm asas

dEUS, “Roses” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GeRMUdkDxCE

A nortada estava diferente. O espólio distante protestava contra a monotonia, como se a repetição dos dias conspirasse contra os estuários onde se acolhiam os diferentes rostos, as diferentes ideias. Dizia: se não me engano, as saias são para mulheres. E antes que viesse um apedrejamento organizado pelos sacerdotes da modernidade, refugiou-se na cave onde só tinha cabimento o tempo atávico.

O tempo também estava diferente; não era só a nortada. Mas os tempos diferem mal mudam de pele, é a invariável ascendência da transmutação das coisas que nenhum conservador, nem o mais empedernido, consegue domar. Era sobre este tempo mudadiço que os anjos adejavam. Ora para os sancionarem, neles vertendo um freio que arrefecia o inédito; ora dando-lhes caução para serem um novo farol por onde a escuridão se decanta. Os anjos perseveravam nesta empreitada irrecusável, sabiam que eram de confiança e que muitos eram os olhares para eles virados, como se fossem um cofre onde a bondade e a esperança eram depositadas. Foram habilitados como escansões das várias colheitas de tempo. Souberam ser cobaias, em nosso nome.

Não se podia esperar que tudo fosse imune a contratempos. Com alguma assiduidade, os contratempos estilhaçam a estabilidade, pondo as pessoas à prova, desafiando-as a aprender os desafios e a serem atores depois de empossados no novo palco. Os anjos ficavam para trás, como se o vento não fosse de feição e eles, esgotados, ficassem em contumácia. Sem aviso, um furacão meteu-se no caminho. E os anjos, apanhados no meio do furacão, ficaram à mercê do acaso. Todos ficaram à mercê do acaso. 

No dia seguinte, no inventário dos despojos da tempestade, os anjos foram sendo encontrados em lugares diferentes. Cada um fugiu para seu lado, ou foram aleatoriamente atirados pelos ventos vulcânicos para onde a sua vontade os enviou. Não havia baixas entre o contingente dos anjos. Mas já não tinham asas. Já não se podia esperar que fossem as figuras tutelares dos diferentes tempos abraçados a um manual de instruções.

Agora, era tudo que era diferente. As pessoas sentiam a vertigem que o tempo pesava e, com ele, a voragem das mudanças. De uma vez por todas, deixara de ser o lugar para as linhagens de conservadores. A estes, restava inflamar a seiva da saudade. E sonhar com os anjos, quando eles ainda tinham asas.

3.5.23

Antes que seja cedo

Stone Temple Pilots, “Creep”, in https://www.youtube.com/watch?v=sT1DdO3SISg

Os lençóis cobriam parte do corpo. A noite já não fora fria e o corpo, transido pelo frenesim dos sonhos, destapou-se. Não havia vestígios da noite, embora o sol ainda não a tivesse destronado. Os sonhos são quase sempre esquecidos, ou quase nunca lembrados, como se escondessem atrás de uma penumbra. São um idioma sem gramática.

Mais tarde, a meio da tarde: o vento levemente acidulado coreografava a folhagem ainda recente das árvores, agitando o seu frescor. As pessoas já procuravam uma sombra. Na esplanada, o movimento habitual. Uma senhora reformada a ler. Um par de namorados, a aproveitar o idílio do namoro infante enquanto não se esgota a inocência (mas eles estão convencidos que não são inocentes). Um estrangeiro, com ar de quem veio a uma reunião importante, pede uma cerveja e outra logo a seguir, como quem saiu triunfante e se autoriza uma autocelebração. Um pedinte aproxima-se das mesas, de mão estendida. Nunca se diga que a imagem do paraíso é imorredoira. O cinismo da existência descura as ilusões, como se narrasse as impressões digitais que não se desligam do espaço limítrofe. O cinismo é militante. E o espaço limítrofe é uma imensa enseada que dá a volta sobre si mesma.

No dia seguinte, enquanto regressa a casa no metro apinhado, o olhar desvia-se para a publicidade. O capitalismo não perde tempo. Já que as pessoas são transportadas em carruagens sobrelotadas a caminho de casa, ou a caminho do trabalho, aproveita o tempo do transporte para as torpedear com mensagens subliminares sobre as falsas virtudes do consumo. Não se perde tempo com o tempo que se julga perdido. Abstraiu-se da epistemologia dos tempos hodiernos (não é tempo para filosofia política). Um dos anúncios publicitários apropria-se de um haiku de Ron Padgett: 

Primeiro acalma-te.

Depois, fica assim

para o resto da vida.

Percebeu o significado de anestesia. O conceito de esplanada, a meio da tarde, o furtivo encenador das rapsódias que se amontoam na soma das vidas mutuamente desconhecedoras que se sentam, limítrofes umas das outras, e todavia todas indiferentes. Pensou: como reagiria a senhora reformada se perguntasse o que estava a ler? E os jovens enamorados, se os desenganasse da inocência? E o executivo estrangeiro, se perguntasse se as cervejas consecutivas eram vício? E o mendigo, que dores excruciantes, como se suas fossem sem serem do seu corpo, que dores contaria se lhe pagasse o lanche e pedisse um resumo da biografia?

À noite, antes de voltar a dar o corpo ao mimo dos lençóis, voltou à poesia. Antes que fosse cedo, aprendeu que

Desse tempo se fez laje,

desse riso se fez siso,

desse ontem se fez hoje,

deu-se o ontem pelo hoje.

(Daniel Jonas, Cães de Chuva, Assírio & Alvim, 2021, p. 83)

e fechou o livro. A tempo do sono.

2.5.23

Usura

Garbage, “Cities in Dust”, in https://www.youtube.com/watch?v=vgAujpyDyTM

Dizias-me tudo. Mesmo que as sombras fossem o eclipse total e as palavras esbarrassem numa montanha por polir. Mesmo que falasses noutro idioma e eu, fingindo sabê-lo, não o percebesse. As tonturas que o amanhã desperta são como apelos ao arnês, que não deve ficar esquecido na barricada.

Medíamos os passos com uma bússola enferrujada. Não sabíamos por que medíamos os passos; não havia uma intenção topográfica, nem o chão sob os nossos pés era um astrolábio que se desembrulhava à medida dos passos encetados. Dir-se-ia: era só um passatempo. Como se fingíssemos que o tempo não é uma usura e que passá-lo como se ele não existisse disfarçasse o demais. Dizias-me tudo: aquela noite é um fantasma sem rosto, mas não acreditamos em fantasmas. E deitavas o rosto no meu ombro ainda mais cansado.

Por vezes, subíamos ao miradouro. Se soubéssemos, por fonte credível, que não estava ninguém. Detínhamos o olhar no vazio profundo que era o mar a perder de vista. Contávamos os navios que esperavam por vez para entrar no porto. Percebíamos a lógica do entardecer quando o mar largava uma língua de nevoeiro que se deitava sobre a faixa limítrofe ao mar, outras vezes, a língua mais ousada, cobrindo toda a cidade como se um vulcão tivesse vertido as cinzas sobre o céu. Dizias: é o mar que nos aconselha, o mar que não quer que a terra seja órfã. Tendia a concordar. A orfandade é como perder as bússolas. E eu acrescentava que o mar parece ainda mais misantropo. 

Se fôssemos aos fundamentos da usura, não sei se ficaríamos sem resposta para a demanda. É da natureza das coisas sortílegas não revelarem os segredos que as infundem. Fosse outro o caso, e delas não se podia dizer que eram sortilégios. As braçadas de um nadador despenteavam o mar, como costuma acontecer quando as embarcações cortam o mar em dois hemisférios e deixam uma convulsão temporária, uma pequena onda a fazer de dominó para as seguintes. Os braços de um homem podem tanto como os hélices imponentes de um cargueiro. Se tudo fosse assim metafórico, éramos osmose de máquinas e elas tomar-se-iam por pessoas. Talvez fosse o seu sonho. E o nosso pesadelo.

Se ao menos um código de desconduta fosse tatuado na árvore centrípeta, e se nele estivessem contidas as normas que não devemos seguir, da usura não se diria ser uma ferida aberta com um algoz por perto, pronto para verter cal viva. A desconduta seria transfigurada em usura. Não concordaste: se a desconduta se tornasse a conduta vindoura, era a usura a falar outra vez com a sua voz dominante, sepulcral, sem admitir vozes contraditórias. Dizias-me tudo. Até que a usura pode ser a nossa maior capital cicatriz. Como se precisássemos de vulcões.

E eu retorqui: a cicatriz é uma cura?

1.5.23

Na pastelaria não há só doces

Andrew Bird, “Never Fall Apart”, in https://www.youtube.com/watch?v=nO-iEIeMUpo

Dantes, era tudo diferente – já estava cansado de ouvir os Velhos do Restelo que, sem a culpa do poeta fundacional, denigrem a linhagem do Restelo. Se ao menos houvesse uma toponímia que exorcizasse estes vultos não grados que nos afocinham numa melancolia incorrigível, podíamos ter mais esperança na genealogia do futuro. Não parecia ser o caso.

Na pastelaria, a televisão está sintonizada no canal que parece ser assinatura obrigatória (ou pelo menos natural) das pastelarias. Se fizesse um inventário das pastelarias, o meu reduzido sentido estatístico diria que oitenta por cento trazem, através desse canal televisivo, as desgraças e os dramas e as tragédias em primeira mão. Viro-me de costas para a televisão, mas o som tempestuoso continua a agredir o pensamento. Alguém podia avisar a estação de televisão que a vida é muito mais do que desgraças, dramas e tragédias (e a maldita classe política, de que apetece, de repente, gostar, só para contrariar o ainda mais maldito canal televisivo). Alguém podia advertir a humanidade para não comer ao pequeno-almoço desgraças, dramas e tragédias – a menos que cada militante da modalidade sonhe com a misericórdia dos seus pares se no futuro for vítima de uma desgraça, de um drama ou de uma tragédia.

É como o negócio das pastelarias. Não se limitam a vender doçaria. Os clientes podem encomendar salgados e outras iguarias que não pertencem à doçaria (mesmo se, entre o escol da gastronomia, se fundem sobremesas com ingredientes que são próprios dos salgados). Podem almoçar os pratos do dia, que não são doces (pese embora, os gurus da gastronomia muito-à-frente, adicionem um ingrediente doce a um prato principal).

Pelo sim pelo não, pedi um pastel de nata para acompanhar o café e ajudar à digestão do rol de desgraças, dramas e tragédias que colonizava a pastelaria. O pastel de nata sabia a azedo. Desconfio que era por causa da vozearia que passava na televisão. Chamei o empregado de mesa e perguntei se não podia mudar de canal (já que a hipótese de silenciar a televisão era uma heresia: uma pastelaria em silêncio é como fabricar pasteis de nata sem açúcar). O rapaz ficou sem jeito, olhou para o balcão, na direção do homem que seria o seu chefe, e disse, em surdina, que tinha de perguntar ao chefe. Disse-lhe que não valia a pena, pressentindo que o chefe diria categoricamente que não e descarregaria no empregado de mesa a fúria que gostaria de descarregar no cliente, não fosse proibido hostilizar os clientes. 

Antes de sair, e ainda faltava abocanhar a última dose do pastel de nata, chamei o empregado, que se chegou a medo. Sosseguei-o: “Deixe lá estar a televisão. Traga-me um rissol de camarão para acompanhar o resto do café, por favor” (e o resto do pastel de nata, pensei sem o dizer). Pois na pastelaria não há só doces.