31.5.23

Horas extraordinárias

Sean Carpio, “Ancestral Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=A5QwNuCX3Bc

Se puderes, ensina-me a semear as horas extraordinárias. Pega nos meus dedos e eu deixo que deles te sirvas para desenhares o dicionário onde se congeminam as horas extraordinárias. Prometo recompensa a preceito. Prometo ser diligente seguidor das horas extraordinárias que me souberes doar.

Destas horas que são extraordinárias fica a moldura da perenidade. A menos que a memória seja atraiçoada e o esquecimento se sobreponha, podendo-se duvidar se essas horas foram extraordinárias. Tê-lo-ão sido quando assim foram inventariadas – não pode sobre isso ser legítima a dúvida. Pergunto-te: as horas extraordinárias prescrevem, sabotadas pela memória controversa que se enquista como matéria morta, às custas da capitulação que vem com o tempo? E tu, sem hesitar, evocas a moldura da perenidade das horas extraordinárias. Elas desmentem o princípio geral da finitude das coisas.

Agora que me ensinaste a distinguir as horas extraordinárias, julgo que posso engordar a estipulação com umas mãos cheias delas. Muitas devem-se a ti, que ao mesmo tempo me arrancaste da letargia e és intérprete dessas horas. Confundo agora os dois papeis, mas não interessa. No exercício de ambos passaste a ser a mais extraordinária das horas, mapa por onde me perco sem me saber perdido, âncora que me devolve a lucidez que teimo em perder por perto, um ensino contínuo. É uma extraordinária hora composta de centenas de milhares de horas, na adulteração intencional da aritmética – uma adulteração que não nos faz párias à mercê dos polícias dos costumes. 

Nessa demorada hora extraordinária composta por incalculáveis extraordinárias horas, houve alguns intervalos que conferem a nobilitada hora que é a nossa morada. E outras, sublimes, que cresceram por cima das ameias do castelo para as anotarmos num bloco de notas que é segredo, arrumando com as mãos diligentes as estrofes que elas verteram no opulento regaço em que nos amparamos. Esse regaço que é do tamanho de mares inteiros.

Estas são as horas extraordinárias que não têm valor. A embocadura onde arpoamos a carne que o tempo deixa passar. As horas, algumas, tatuadas nas rugas que nos avivam a maturidade pendente. Mas extraordinárias, tão extraordinárias horas são estas que ditamos, à revelia da modéstia, que seriam horas heurísticas para quem, por fora de nós, as pudesse angariar.  

 

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