4.5.23

Os anjos já não têm asas

dEUS, “Roses” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GeRMUdkDxCE

A nortada estava diferente. O espólio distante protestava contra a monotonia, como se a repetição dos dias conspirasse contra os estuários onde se acolhiam os diferentes rostos, as diferentes ideias. Dizia: se não me engano, as saias são para mulheres. E antes que viesse um apedrejamento organizado pelos sacerdotes da modernidade, refugiou-se na cave onde só tinha cabimento o tempo atávico.

O tempo também estava diferente; não era só a nortada. Mas os tempos diferem mal mudam de pele, é a invariável ascendência da transmutação das coisas que nenhum conservador, nem o mais empedernido, consegue domar. Era sobre este tempo mudadiço que os anjos adejavam. Ora para os sancionarem, neles vertendo um freio que arrefecia o inédito; ora dando-lhes caução para serem um novo farol por onde a escuridão se decanta. Os anjos perseveravam nesta empreitada irrecusável, sabiam que eram de confiança e que muitos eram os olhares para eles virados, como se fossem um cofre onde a bondade e a esperança eram depositadas. Foram habilitados como escansões das várias colheitas de tempo. Souberam ser cobaias, em nosso nome.

Não se podia esperar que tudo fosse imune a contratempos. Com alguma assiduidade, os contratempos estilhaçam a estabilidade, pondo as pessoas à prova, desafiando-as a aprender os desafios e a serem atores depois de empossados no novo palco. Os anjos ficavam para trás, como se o vento não fosse de feição e eles, esgotados, ficassem em contumácia. Sem aviso, um furacão meteu-se no caminho. E os anjos, apanhados no meio do furacão, ficaram à mercê do acaso. Todos ficaram à mercê do acaso. 

No dia seguinte, no inventário dos despojos da tempestade, os anjos foram sendo encontrados em lugares diferentes. Cada um fugiu para seu lado, ou foram aleatoriamente atirados pelos ventos vulcânicos para onde a sua vontade os enviou. Não havia baixas entre o contingente dos anjos. Mas já não tinham asas. Já não se podia esperar que fossem as figuras tutelares dos diferentes tempos abraçados a um manual de instruções.

Agora, era tudo que era diferente. As pessoas sentiam a vertigem que o tempo pesava e, com ele, a voragem das mudanças. De uma vez por todas, deixara de ser o lugar para as linhagens de conservadores. A estes, restava inflamar a seiva da saudade. E sonhar com os anjos, quando eles ainda tinham asas.

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