Na biblioteca, nunca procurava livros na estante prometida. Errava por outras estantes, perdia-se no labirinto dos livros de que só saberia depois da existência. Lá em casa diziam que estava condenado a não passar da cepa torta: andava como o caranguejo, sempre para o lado, outra vez para o lado, até que o lado a que ia parar estava nos antípodas do lado inicial.
Não se apoquentava (de não passar da cepa torta). Não queria fazer carreira e, a crer nos exemplos dos que urdiam as piores conspirações para subirem na carreira, não era lugar que queria frequentar. Ninguém o convencia a ser cultor de uma especialidade, afunilando o conhecimento como se apenas houvesse aquele domínio do conhecimento. Dizia: “um perito de uma coisa só é um perito anão, amordaçado nos corredores estreitos desse conhecimento.” Não queria ser participante deste nanismo e ser refém desta mordaça.
Quem conhecia a sua secretária sabia da desarrumação dos livros que quase não deixava uma nesga desimpedida para que a pessoa que se sentasse do lado contrário o pudesse ver. O apanhado dos livros empilhados era uma arca de Noé do conhecimento. “Um dia de cada vez, um livro de cada vez”: o lema que acompanhava a assinatura nos emails enviados. Hoje pode ser um livro de Sociologia, amanhã um de História, depois de amanhã outro de Filosofia das Ciências, ao quarto dia a Literatura Clássica, ao quinto (escolhido ao caso como dia de leitura lúdica) um roteiro de turismo para ver se decidia aonde ia de férias, ao sexto um livro sobre Biologia, ao sétimo um livro de Economia, ao oitavo um livro de Geografia – e assim sucessivamente.
Eram anos de carreira perdidos, porque nunca quis ser perito de um conhecimento apenas e continuava a acordar com a versatilidade a servir de condimento do pequeno-almoço. Não lhe pedissem planos. Ele era o primeiro a boicotar os planos que fossem da sua autoria: um dia acorda e descobre, à última da hora, desfazendo a maré pensada de véspera, uma leitura que não estava no programa. E assim foi fazendo o tempo, de leitura em leitura, anarquicamente, apenas com uma regra de conduta: não havia regras, nem as ditadas por ele e muito menos as que pudessem ser ditadas pelos outros, a açambarcarem a leitura. Apenas as manobras de diversão que o impediam de ser perito e o consagraram à abertura de espírito de quem se situava no ponto de intersecção de vários conhecimentos.
Que lhe chamassem caranguejo, por causa das sucessivas manobras de diversão que o atiravam constantemente para o lado e mais para o lado, não o importunava. Gostava de dialogar com os vários ramos do conhecimento. Sem querer, por não poder, ser erudito de coisa alguma. As cátedras que ficassem para os ambiciosos que não se importavam de conhecerem tão pouco.
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