15.5.23

O tribunal dos acostumados

A Flock of Seagulls, “I Ran (So Far Away)”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIpfWORQWhU

Falava-se de oportunidades. Os degraus escondidos eram procurados pelos braços dos acostumados. Sem que houvesse cólera por registar. Os amanhãs que esperavam diziam-se ambiciosos.

Houvesse oratória empenhada: os de todo o lado parlamentavam com dignidade. Não havia proibições. Não havia vieses que pudessem boicotar a fala. Aprendia-se. Aprendiam, uns com os outros. Por isso aceitavam parlamentar. Chamavam-lhe o tribunal dos acostumados.

Não que houvesse inércia, para ao tribunal chamarem tribunal dos acostumados. Cada um regia-se pelas regras que estatuía para si mesmo. E respeitava as regras dos outros. Tudo era sobre equilíbrios. Quando havia conflitos, eram os próprios que os resolviam. Promoviam as tábuas de entendimento, sendo os arquitetos que limavam as arestas.

Não havia montarias para aprisionar os dissidentes. Abriam-se as portas do tribunal, mas eles não eram obrigados à conversão. Viriam, se quisessem. E se quisessem vir, podiam sair com a mesma aura de dissidentes. Podiam falar. Podiam discordar do código de conduta. Podiam formular as interrogações que discutiam os esteios dos acostumados. Podiam ser párias sem serem isolados, nem eram convidados ao exílio.

Todas as portas eram permeáveis. As paredes estavam repletas de estrofes dos anos idos, como se fossem a enciclopédia dos costumes e dos descostumes. Todos contavam por igual. Até que alguém interrogou se a paridade entre costumes e descostumes não era uma igualdade do avesso. Deixá-los no mesmo patamar era ultrajante para os embaixadores dos descostumes. Não era por acaso que eram descostumes. Não podiam ser nivelados pelos costumes: por esse andar, um dia destes já não havia diferença entre costumes e descostumes. Isso só podia interessar aos acostumados. A paridade podia acontecer com o esvaziar dos descostumes, silenciosamente transfigurados em costumes.

Foi o tribunal dos acostumados que, num rasgo de lucidez, travou a tentativa de tornar costumes e descostumes pares. Ninguém precisava de ensinar ao tribunal dos acostumados o que era decente. Deixar que os costumes colonizassem os descostumes era indecente. Para os descostumes e para os costumes. 

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