3.5.23

Antes que seja cedo

Stone Temple Pilots, “Creep”, in https://www.youtube.com/watch?v=sT1DdO3SISg

Os lençóis cobriam parte do corpo. A noite já não fora fria e o corpo, transido pelo frenesim dos sonhos, destapou-se. Não havia vestígios da noite, embora o sol ainda não a tivesse destronado. Os sonhos são quase sempre esquecidos, ou quase nunca lembrados, como se escondessem atrás de uma penumbra. São um idioma sem gramática.

Mais tarde, a meio da tarde: o vento levemente acidulado coreografava a folhagem ainda recente das árvores, agitando o seu frescor. As pessoas já procuravam uma sombra. Na esplanada, o movimento habitual. Uma senhora reformada a ler. Um par de namorados, a aproveitar o idílio do namoro infante enquanto não se esgota a inocência (mas eles estão convencidos que não são inocentes). Um estrangeiro, com ar de quem veio a uma reunião importante, pede uma cerveja e outra logo a seguir, como quem saiu triunfante e se autoriza uma autocelebração. Um pedinte aproxima-se das mesas, de mão estendida. Nunca se diga que a imagem do paraíso é imorredoira. O cinismo da existência descura as ilusões, como se narrasse as impressões digitais que não se desligam do espaço limítrofe. O cinismo é militante. E o espaço limítrofe é uma imensa enseada que dá a volta sobre si mesma.

No dia seguinte, enquanto regressa a casa no metro apinhado, o olhar desvia-se para a publicidade. O capitalismo não perde tempo. Já que as pessoas são transportadas em carruagens sobrelotadas a caminho de casa, ou a caminho do trabalho, aproveita o tempo do transporte para as torpedear com mensagens subliminares sobre as falsas virtudes do consumo. Não se perde tempo com o tempo que se julga perdido. Abstraiu-se da epistemologia dos tempos hodiernos (não é tempo para filosofia política). Um dos anúncios publicitários apropria-se de um haiku de Ron Padgett: 

Primeiro acalma-te.

Depois, fica assim

para o resto da vida.

Percebeu o significado de anestesia. O conceito de esplanada, a meio da tarde, o furtivo encenador das rapsódias que se amontoam na soma das vidas mutuamente desconhecedoras que se sentam, limítrofes umas das outras, e todavia todas indiferentes. Pensou: como reagiria a senhora reformada se perguntasse o que estava a ler? E os jovens enamorados, se os desenganasse da inocência? E o executivo estrangeiro, se perguntasse se as cervejas consecutivas eram vício? E o mendigo, que dores excruciantes, como se suas fossem sem serem do seu corpo, que dores contaria se lhe pagasse o lanche e pedisse um resumo da biografia?

À noite, antes de voltar a dar o corpo ao mimo dos lençóis, voltou à poesia. Antes que fosse cedo, aprendeu que

Desse tempo se fez laje,

desse riso se fez siso,

desse ontem se fez hoje,

deu-se o ontem pelo hoje.

(Daniel Jonas, Cães de Chuva, Assírio & Alvim, 2021, p. 83)

e fechou o livro. A tempo do sono.

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