- As mangas arregaçadas, que me vou ao dia.
Era assim, intrépido e voluntarista, admirador do seu espelho e desconfiado dos outros (todos). E foi-se ao dia, e o dia, que se faça constar, não se intimidou com a promessa de pugilismo metafórico. O dia tinha de lidar com tantos eus angustiados e uns outros tantos autoconvencidos que nem sabia para onde se virar. O melhor critério – revelou o dia em circunspecta entrevista – era não ligar a ninguém.
O artista entrou de rompante nas arcadas da manhã. Deixaria logo meia dúzia de atónitos, não fossem eles conhecedores do artista. O espalhafato militante era como se fosse um objeto de desdecoração. Um deles, talvez num dia pouco dado a “conseguimentos”, deixou cair em semi-sussurro (que já era audível pelos mais próximos):
- Um dia destes vou-te levar à acareação com o dia, para ver se podemos continuar a acreditar no dia ou se tu és o mitómano na sala.
O artista sentiu o vento dessas palavras a assentar na gola das costas, mas estava convencido que não eram para ele (não podiam ser).
- Ah! vocês, meus caros, têm de pagar portagem para frequentar o dia. Eu sou o vosso cobrador. Se pedirem com insistência, serei generoso e concedo-vos o beneplácito da via verde, e gratuita, para exercitarem o dia sem outros constrangimentos que não sejam as vossas dívidas existenciais.
(E enfatizou “dívidas”, para que os outros não confundissem com “dúvidas”.)
As pessoas falavam de sacos de boxe e de estrelas que só o seriam se aceitassem somar o adjetivo “circense”. O artista reunia os dois predicados e, para certas pessoas, simultaneamente. Ao menos, não o acusassem de andar sorumbático, como se tirasse ao dia a pele para com ele jogar esgrima e um esgrima à maneira de certos desportistas que preferem garantir o triunfo servindo-se de meios e métodos fraudulentos. Não interessava (bem entendido: que o artista não fosse propenso a depressões, das gratuitas ou das devidamente diagnosticadas; já menos, os meios e métodos fraudulentos dos catedráticos dos fins que justificam os meios).
Um dia, os outros prepararam uma encenação que, enquanto encenação, era apenas simbólica. Um brincadeira, se pedirmos de empréstimo o vocabulário pueril, com tantas incursões no ludismo. Fizeram passar um abaixo-assinado, contudo sem assinaturas (ó maldita hipocrisia: a maré negra que enxovalha os covardes), para o artista ser transferido para a delegação do norte. Nem quiseram saber do parecer dos do norte, só queriam desenvencilhar-se do artista – e lá teriam de apanhar com as dores de consciência depois de os do norte acusarem o toque centralista dos de Lisboa, que nunca têm em consideração os seus (do norte) interesses.
O artista ficou comovido. Os do norte teriam um tempo diferente pela frente ao poderem travar conhecimento com a sua pessoa; um astro-rei em forma de gente, para clarear aquelas existências com vários lampejos de grandiosidade – um paradigma a seguir e ele, de tanta grandiosidade que irradiava, não se importava da partilha.
O chefe, menos dado a estas coisas da ironia, depois de acusar os outros por “brincarem com coisas sérias”, chamou o artista. E nomeou-o chefe da pandilha restante.
O artista, sem saber, tinha morrido. E ninguém o convidou para o seu próprio funeral.
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