30.5.23

O fazedor de sismos

Tindersticks, “Marbles”, in https://www.youtube.com/watch?v=19Eu1tDnQn4

Como se desmontam os demónios? Como se contraria a insanidade que amanhece com a noite e se perpetua nas veias esquecidas? Como se esconjuram as cicatrizes que são um mapa no corpo estremunhado? Como se antecipam as didascálias bizarras que murmuram no feitiço dos sonhos?

Usava o dia com a usura do costume. Não se intimidava com a invocação da consciência: a austeridade fê-lo à prova de dores, até das dores de consciência. Não lhe contassem fábulas incandescentes com almas errantes e outras à procura de conforto. Ou encenações com unicórnios pelo meio, que os seus fautores não desistiam de fidelizar os mitos. Pudesse a sua insensibilidade ser medida em ouro e não havia dívida externa a pesar como um garrote sobre o país vindouro (costumava lamentar-se, na intimidade do silêncio).

Não eram os muros que o incomodavam. Sempre houve muros a apartar as pessoas, porque haveria esta era de ser de desmuros? Alguém contrapôs: o muro de Berlim já não existe e todo esse simbolismo é mais do que uma metáfora. Mas havia outros muros, os muros invisíveis, e esses estão tatuados nas mentalidades que não mudam por decreto (apesar do voluntarismo e da – autoproclamada – bondade dos engenheiros sociais). Esses são os muros que não se transpõem, que não se abatem. 

A menos que um sismo fosse tão preventivo que os muros fossem dissolvidos numa maresia de novas mentalidades. Era preciso formar um fazedor de sismos. Era preciso que desmontasse os arquétipos para obrigar as pessoas a pensar, elas que não estão habituadas a fazê-lo e confiam, por omissão ociosa, nos autopropostos pensadores da comunidade. Era preciso convencer as pessoas que estes sismos as obrigam a peregrinar interiormente para saberem as extremas que perdem bússola, para descobrirem onde se recolhe a âncora e deixar a embarcação navegar por autorrecreação. 

O fazedor de sismos podia ser tomado como um anjo exterminador, o escultor da nova civilização, os dedos impregnados de tinta-da-china a deixar poemas à sua passagem nas paredes contumazes da cidade, para que as pessoas amanhecessem e confiassem que estavam num lugar diferente, com o sol e as nuvens e a chuva de sempre, mas sem a injúria do mundo de antigamente. Porque o fazedor de sismos se contorcia, em repetidas ondas sísmicas que subiam na escala de Richter, de cada vez que ouvia um conservador apregoar que antigamente é que era bom. 

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