22.5.23

Sonho alto (corsário)

Expresso Transatlântico, “Bombália”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q1UDt5TfTa8

Lobo mau, lobo mau: assim arranco o coração com as mãos, o sangue todo como seiva dos fantasmas que se escondem na brisa das sombras. E tu, lobo mau, sequestras o mundo que não está de atalaia. Os penhores da carne são oferendas aos forasteiros sem caução. Toda esta luz clara fere a alma. E tu, lobo mau, passas invisível entre os rasgões do vento.

Se ao menos as largas vidraças não fossem baças, talvez os amanhãs não fossem juras sem consentimento. Dizes, lobo mau, que os amanhãs são promissores. Desconfio que é uma anestesia que insinuas junto dos distraídos, para juntares à tua volta um séquito de gente esfaimada do seu próprio sangue. E depois, quando as marés se sublevam e destroem os castelos de areia, sobram os poemas que adoçam a boca, a mesma boca que já não os sabe entoar de cor. E tu, lobo mau, rasgas a pele porque sabes que os sonhos estão exorcizados. 

Sonho alto, este. Como o promontório onde se armam as cristalinas águas que dão alimento à sede. Os prístinos dias convocam-se contra a madurez; lobo mau, dizes que esta é a meia-idade, e eu aplaudo a ideia: ainda tenho a outra metade para meus dedos desenharem as fronteiras e as desfronteiras. Não me retiras esta bucólica enseada onde me sei exilado. Esses sonhos são tempestuosos, como se fossem o fingimento da vida que se entretece no queixume de quem se desvia de sobressaltos. 

Dizes que sonho alto, lobo mau. E sonho. Muito alto, como se fosse um atleta com mais de dois metros, ou talvez uma montanha que sobe além dos dois mil metros, e abraço em mim os êxtases que emprestam corpo à vida – ou como o tenor, com a sua voz grave, o pano de fundo para a voz-trovoada que fala para longe. Sonho alto como se por dentro do sono dormisse acordado. E às raízes do sonho arrancasse a ossatura de que preciso. 

Se sonho alto, os sonhos são cúmplices. Materializem-se ou não, encontrem diagnóstico em fragmentos do passado, ou não. Sabes, lobo mau: não és intimidação que se abata sobre o meu consolo. Porque sei que estás banido dos sonhos e por isso é alto o sonho que traduz o sonhar alto.

Subo às asas do sonho alto para me entronizar na invisibilidade de um lugar que sabe de que cor é a carne que trago vestida. Como se fosse o melhor dos corsários.

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