2.5.23

Usura

Garbage, “Cities in Dust”, in https://www.youtube.com/watch?v=vgAujpyDyTM

Dizias-me tudo. Mesmo que as sombras fossem o eclipse total e as palavras esbarrassem numa montanha por polir. Mesmo que falasses noutro idioma e eu, fingindo sabê-lo, não o percebesse. As tonturas que o amanhã desperta são como apelos ao arnês, que não deve ficar esquecido na barricada.

Medíamos os passos com uma bússola enferrujada. Não sabíamos por que medíamos os passos; não havia uma intenção topográfica, nem o chão sob os nossos pés era um astrolábio que se desembrulhava à medida dos passos encetados. Dir-se-ia: era só um passatempo. Como se fingíssemos que o tempo não é uma usura e que passá-lo como se ele não existisse disfarçasse o demais. Dizias-me tudo: aquela noite é um fantasma sem rosto, mas não acreditamos em fantasmas. E deitavas o rosto no meu ombro ainda mais cansado.

Por vezes, subíamos ao miradouro. Se soubéssemos, por fonte credível, que não estava ninguém. Detínhamos o olhar no vazio profundo que era o mar a perder de vista. Contávamos os navios que esperavam por vez para entrar no porto. Percebíamos a lógica do entardecer quando o mar largava uma língua de nevoeiro que se deitava sobre a faixa limítrofe ao mar, outras vezes, a língua mais ousada, cobrindo toda a cidade como se um vulcão tivesse vertido as cinzas sobre o céu. Dizias: é o mar que nos aconselha, o mar que não quer que a terra seja órfã. Tendia a concordar. A orfandade é como perder as bússolas. E eu acrescentava que o mar parece ainda mais misantropo. 

Se fôssemos aos fundamentos da usura, não sei se ficaríamos sem resposta para a demanda. É da natureza das coisas sortílegas não revelarem os segredos que as infundem. Fosse outro o caso, e delas não se podia dizer que eram sortilégios. As braçadas de um nadador despenteavam o mar, como costuma acontecer quando as embarcações cortam o mar em dois hemisférios e deixam uma convulsão temporária, uma pequena onda a fazer de dominó para as seguintes. Os braços de um homem podem tanto como os hélices imponentes de um cargueiro. Se tudo fosse assim metafórico, éramos osmose de máquinas e elas tomar-se-iam por pessoas. Talvez fosse o seu sonho. E o nosso pesadelo.

Se ao menos um código de desconduta fosse tatuado na árvore centrípeta, e se nele estivessem contidas as normas que não devemos seguir, da usura não se diria ser uma ferida aberta com um algoz por perto, pronto para verter cal viva. A desconduta seria transfigurada em usura. Não concordaste: se a desconduta se tornasse a conduta vindoura, era a usura a falar outra vez com a sua voz dominante, sepulcral, sem admitir vozes contraditórias. Dizias-me tudo. Até que a usura pode ser a nossa maior capital cicatriz. Como se precisássemos de vulcões.

E eu retorqui: a cicatriz é uma cura?

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