24.5.23

O enforcado por uma unha negra

DIIV, “Doused”, in https://www.youtube.com/watch?v=KI79GPXAICM

Queria uma homenagem e acabou enforcado. As medidas conseguiam os seus deslimites, quando tudo à volta se esboroava numa vontade fracassada. 

Um dia confidenciou: “gostava de ver o nome imortalizado na toponímia.” Fez os impossíveis por chamar a si a visibilidade. Era como se sentisse que a sua grandeza transbordava da pessoa que era. Ou que a pessoa merecia outra dimensão, como se reclamasse a seu favor uma galáxia inteira e todos fossem seus satélites. Nesse dia, a confidente segredou, em forma de discreta advertência: “cuidado, depressa podes perder a noção dos limites. E depressa vens do céu ao inferno.”

Não se importava de não ter direito ao anonimato quando andava na rua. Sentia um prazer indiscritível ao sentir as outras pessoas a sinalizarem o seu reconhecimento com olhares sintomáticos – ele notava, com deleite, os olhares levantados do chão como quem reconhece o rosto com que se cruzam. Contra a apatia geral. Um serviço público. Há pessoas que só por existirem são um inestimável serviço público. Todos os que levantam o olhar e o reconhecem é como se manifestassem o agradecimento por ele existir. 

De outra vez, outra pessoa do seu círculo quis temperar os excessos de autocontemplação: “tem cuidado, nem tudo é interpretado pelos outros de acordo com a tua grelha de análise.” (Era um incorrigível sociólogo, este conhecido.) Não se intimidou. Ele não se cansava de olhar para o seu espelho metafórico. Para além do seu espelho metafórico. Como se precisasse de encontrar novas constelações que albergassem todas as ramificações do seu eu. 

Um dia, foi o descalabro. Na enésima presença na televisão, perdido entre a infinitésima vez em que usava “eu” para adornar as frases, perdido na encruzilhada da sua gongórica opinião sobre tudo-e-mais-alguma-coisa, foi atraiçoado por um deslize imperdoável, apontando o dedo ao interlocutor que o provocou num debate de ideias sobre a inevitável atualidade (a maldita atualidade): 

Sobre esse assunto, não duvide do que digo. É doutrina. Doutrina com o meu lacre. E eu não minto. Não minto! Que me lembre, nunca menti. Mesmo que este seja o mais aberto descaro que proclamo, o perjúrio cai sobre si, que não lhe admito lições de moral e não demora muito estou a encomendá-lo ao mais respeitável raio que o parta.

Quanto findou a colérica intervenção, pouco faltava para a jugular explodir numa erupção feérica. Uma gota de suor escorria velozmente pelo rosto abaixo, prestes a invadir o canto da boca que ainda estava trémula. Caiu em si. Esteve a um triz de pedir a desculpa, aproveitando o silêncio atónito da moderadora e do interlocutor, convertido em inimigo pela cólera que o invadiu. Mas não podia pedir desculpa. Era dar parte de fraco. E ele não podia dar parte de fraco. 

Nunca mais apareceu nas televisões e nas estações de rádio. Nunca mais os jornais lhe pediram a opinião de perito. Aqueles vinte irados segundos fizeram a diferença entre a pública condição que tanto considerava e o enforcamento – em público, como tinha de ser.

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