R.E.M., “Orange Crush”, in https://www.youtube.com/watch?v=_mSmOcmk7uQ
A despesa maior é alguém ser tão indispensável que não acredita em nada, nem na sobrevivência das coisas, após o seu decesso.
Pode ser apenas um caso de nepotismo embrulhado na desconfiança dos outros, pois nenhum há que seja tão capaz para tomar conta das coisas que pertencem ao déspota. Uma espécie de direito divino, a coberto da presciência com cabimento na mesma larva, faz com que tudo seja chamado à sua decisão, ele, o único imprescindível até que a natureza das coisas trate de desmentir a sua perenidade.
Se a lógica fizesse o seu caminho, a descentralização seria a palavra de ordem. A delegação de competências assenta na escassez de tempo e na impossibilidade de um só concentrar todas as pendências que compõem o quotidiano, sem esquecer a estratégia alinhavada para os amanhãs que se seguem. Ninguém é capaz de dar conta de tudo; fingir uma delegação de competências que transfere assuntos menores, a burocracia que assoma na espuma dos dias, e depois exigir que seja enviado de volta para ratificação superior, é a prova da infalibilidade do déspota e da desconfiança dos que disfarçadamente recebem as poucas competências delegadas.
Num ambiente destes não há um módico de confiança, nem sequer dos que estão nos degraus inferiores da hierarquia e, a certo momento, recebem fingidas competências delegadas. Começa a medrar um sistema que alimenta a desconfiança recíproca. O déspota dirá que é devedor de uma desconfiança sistemática, sob pena de o poderem enganar. Os que são escolhidos para exercer uma disfarçada delegação de competências apercebem-se da concentração de poderes e da desconfiança que o alimenta, sendo tomados por uma reserva mental que ateia a desconfiança perante o déspota e de uns pelos outros. A bola de neve, imparável, alimenta desconfiança atrás de desconfiança. A entropia passa a ser a palavra de ordem. O déspota é a primeira vítima da desconfiança sistemática.
Se o déspota não fosse déspota, era o primeiro curador do seu bem-estar. Delegar competências é inventar tempo para tratar de outras coisas. É acreditar nas suas próprias escolhas, investindo um capital de confiança para que os escolhidos sejam credores da confiança e diligenciem o seu melhor. Todos têm a ganhar. A começar pelo déspota que aprendeu a deixar de ser déspota a partir do momento em que confiou, com autenticidade, na delegação de competências – e aprendeu a confiar em pessoas, ultrapassando a mal disfarçada desconfiança de si mesmo.
Acreditar em heróis – sobretudo se é o próprio que autoatribui essa condição – tem dado maus resultados. A História está aí para avivar a memória.
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