New Order, “Leave Me Alone” (live 1983), in https://www.youtube.com/watch?v=J7rkHi6scBw
O sistema político é um porta-aviões, daqueles muito americanos em que cabem cidades inteiras. Na semântica militar, os porta-aviões são fortalezas itinerantes deslocadas estrategicamente para um certo lugar quando a potência detentora quer impor a sua presença, nem que seja pela via da dissuasão. São um esteio, portanto. Como o sistema político.
O sistema político em que vivemos tem dois alicerces (para além das fundações constitucionais): a supressão do autoritarismo; e a desmilitarização da política, quando a transição para a democracia foi completada com a extinção do MFA e a devolução da tropa aos quarteis. O primeiro alicerce é um fundamento axiológico do sistema político, o húmus de onde medrou uma democracia alinhada pelos parâmetros da democracia ocidental. O segundo tem um fundamento simbólico.
Há interpretações divergentes sobre o papel dos militares na conturbada transição para a normalização democrática. Uns consideram que os militares foram determinantes para a deposição da ditadura e exerceram um papel importante na configuração da democracia civilizada, governada por civis. Outros são mais céticos, lembrando as derivas totalitárias de certos militares durante o PREC e de como a Constituição de 1976 foi uma dádiva para a democracia ao selar a guia de marcha dos militares para os quarteis. Quem perfilha esta abordagem não deixa de atribuir um significado importante ao alicerce simbólico do sistema político. Muito embora o General Eanes tenha sido presidente da república no período da normalidade constitucional, esse foi o último estertor dos militares no atual sistema político que, julga-se, está consolidado ao fim de quase meio século.
As circunstâncias dos presente exigem a mudança do tempo verbal da frase anterior para o passado: julgava-se que Eanes tinha sido o último enxerto militar no sistema político. A subida a palco do almirante (retirado) Gouveia e Melo veio lembrar que nada é eterno, até nos sistemas políticos. Não está em causa a castração cívica do almirante. Os seus direitos cívicos são os mesmos dos meus ou do(a) leitor(a); ele, eu e o(a) leitor(a), desde que tenhamos mais de trinta e cinco anos e um registo criminal imaculado, podemos ter a ambição de concorrer às eleições presidenciais. O problema da (ainda putativa) candidatura do almirante é outro e não pode ofender o princípio da igualdade de direitos a que o almirante tem direito de invocar a seu favor.
O problema da candidatura do almirante também não está no receio (de quem o tenha) de vir a ser eleito presidente da república, a crer nas pré-sondagens divulgadas. Se o almirante não estivesse tão bem colocado nas sondagens, a sua candidatura não passava de uma nota de rodapé. Mas esta é uma candidatura problemática – para o sistema político, bem entendido. Da mesma forma que ninguém pode castrar os direitos cívicos do almirante, não era má ideia avivar o significado de cidadania como um feixe de direitos e deveres que se correspondem mutuamente. O almirante devia reconhecer o seu dever cívico de não perturbar o sistema político com uma candidatura “disruptiva” (palavra que ganhou moda) do sistema político. A bem do segundo alicerce, o tal que tem um simbolismo todavia marcante para a definição do sistema político: os militares nas casernas, a política aos civis.
As ambições não se medem aos palmos e, nesse domínio, a prestação de contas obedece ao sentido único da consciência. O almirante tem o direito de exercer a sua ambição política e a saltar da vida castrense para o palco político para coroar a carreira profissional com a máxima sinecura da república (tudo indica, a fazer fé nas sondagens). Como tem direito a ser narcisista, característica que se banalizou com a democratização da opinião e da imagem permitida pela exposição sistemática do eu nas várias redes sociais.
O almirante ganhou palco quando geriu a estratégia da vacinação contra o COVID-19 (depois de substituir um banal funcionário do PS que, no curto mandato que exerceu, se limitou a passear a sua incompetência). Ao pânico do início da pandemia seguiu-se a euforia habilitada pelo restabelecimento da normalidade. Há muitos cidadãos que estabelecem uma relação causal, como se tivesse sido o almirante Gouveia e Melo a inocular pessoalmente cada cidadão vacinado. Confunde-se gratidão ao gestor e estratega com o perfil para a presidência da república. Se isto é um programa político, o sistema político já estava em crise antes de o almirante ter espigado como personagem política.
Há outra dimensão do sistema político hipotecada pela candidatura do almirante: o seu fundamento axiológico. A democracia inaugurada pela revolução de abril de 1974 afastou o fantasma do autoritarismo. Contudo, ao longo dos cinquenta anos da democracia temos sido testemunhas de como ainda pesam certos tiques salazarentos que são transversais à sociedade. Um desses sinais é a sedução por políticos com uma retórica dura, exibindo pulso firme, prometendo uma política musculada para “pôr as coisas na ordem”. A herança de Salazar estava na ossatura de Sócrates, o primeiro-ministro que de si dizia ser um “animal político”. Gouveia e Melo tem a mesma atitude de bravura, oferece um sebastianismo em potência que é do agrado de uma sociedade que não vê para além do nevoeiro.
Se as ideias políticas do almirante são uma incógnita, sabe-se da sua propensão para o autoritarismo. Dirão os mais condescendentes que o autoritarismo coincidiu com a liderança da marinha e que os militares obedecem a uma lógica diferente dos civis, sendo mais importante a cadeia de comando e a obediência hierárquica. O exemplo da reprimenda pública dos marinheiros que se recusaram a embarcar num navio que estava constantemente a avariar é todo um programa de autoritarismo latente.
Aceito que a maioria dos cidadãos queiram “ordem na casa”, estão no seu direito. Inquieta-me a possibilidade de o almirante ser eleito por desafiar os fundamentos axiológico e simbólico do sistema político. E talvez diga muito da qualidade dos rivais do almirante que estão na rampa de lançamento. O que, de si, é tradutor de uma crise do sistema político. A menos que estejamos a dar importância de mais à eleição para o presidente da república.
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