Red House Painters, “All Mixed Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=GQSUIRDs6VE
Temos as mãos, as quatro mãos, acamadas no piano. Alisamos as teclas com o peso suave dos dedos, como se fôssemos credores dos sortilégios. Acompanhamos o rumor da chuva que se despedaça contra a janela. As mãos entrelaçam-se, deixam a melodia por conta do vínculo entre a chuva e o vento. Lá fora, a tempestade dita os seus termos. Mas nós estamos refugiados cá dentro, somos presságio da vontade que fazemos subir ao mastro mais alto em que se calam as nossas bocas.
A noite não está desacompanhada. Dizes-me: com esta tempestade, as ruas estão órfãs. Respondo: só se nós quisermos, podemos ser as almas audaciosas que desafiam a intempérie, com agasalhos à sua prova, para arremetermos contra a chuva que ensaia uma coreografia temível sob os auspícios do vento tempestuoso. Somos nós a ditar os termos em que se entrança a noite válida.
Por mais que esteja assentido que somos todos plágio uns dos outros, desafiamos as convenções. Digo: esse é um simplismo atroz, uma intencionalidade que diminui o valor de cada vida. Não se aceite a proclamação de um escol enredado na soberba que estabelece a distinção entre um “nós” e um “eles”, pois depressa os termos da contenda se invertem e o escol passa pelo batismo de um “eles” que se confunde com o “eles” que inventariam para serem um escol. Digo: que sejam recusados os propósitos de quem se alinhava pela craveira da desigualdade, denunciados por ultraje às suas próprias criações.
Não somos iguais, mas as vidas que se entrecruzam no imenso palco em que quase todos somos indiferentes são pedaços de singularidade. É suficiente para as carregarmos no regaço da humanidade. O plágio insidioso não quadra com a singularidade das vidas permanentes. Por mais que a morte deponha sucessivamente vidas (é um registo diário), há vidas que são legadas ao mundo em cada dia que ele se inventaria. As vidas permanentes, que se sobrepõem à mácula da morte, essa tremenda luva que se abate com o sabre da injustiça.
Todas as vidas esbarram em nós. Não é preciso ter a destreza de um marinheiro para desenredar os nós, vincendos ou por vencer. Temos em nós a argúcia para ultrapassar os nós que se sublevam contra nós. Somos destemidos para converter esses nós, firmemente atados, numa meada que transfiguramos no caudal por onde fazemos ecoar a vida. Nós que são desafiados por nós na incindível vontade que acende os princípios da vida conduzida pela singularidade.
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