Max Richter, “Movement, Before All Flowers”, in https://www.youtube.com/watch?v=MuWkgLc7N_0
Vai cheio, o rio, portanto caudaloso, que engorda com o beneplácito da chuva. Não vale a pena inventar teorias: é a chuva abundante que alimenta o caudal, não são rezas pagãs que convocam a chuva quando os espíritos inquietos as encomendam para esconjurar um longo estio.
Vai a eito o rio caudaloso, quando atravessa as margens e coloniza o chão que não lhe pertence. Às vezes, nem os ardis do Homem, quando constrói barragens para domesticar rios que ficam fora de si quando a chuva é copiosa, servem para amansar os rios. E os rios saltam as margens, entram em casas limítrofes, os terrenos de cultivo ficam alagadiços, aprisionados num paradoxal destino: essas veigas são férteis porque estão nas imediações do rio, que é o manadeiro da sua fecundidade; mas quando o rio se zanga e fica fora de si, destrói toda essa fertilidade de que foi inspirador. Não há deuses que conspiram contra o sossego das pessoas que vivem à volta do rio. É a ação da natureza, no complexo novelo que transporta as tempestades do mar até terra e combina para engordar o caudal dos rios sem que as barragens consigam ser uma medida de efeito contrário.
Não há sortilégios que fundamentem a ação da natureza. A ordem dos mitos fica por conta de imaginações férteis e de uns quantos céticos que talvez disfarcem a ignorância atrás do ceticismo. É como na toponímia: os nomes de gente normalmente mortal que encorpa a toponímia não personificam mitos (tirando um punhado deles que, por decreto de pedagogos ao serviço do “interesse nacional”, entram em panteões, existentes ou imaginários). São apenas gente-gente, tão normal como eu e tu, tão mortais como eu e tu, descontando a elevada probabilidade de eu e tu não ficarmos imortalizados na toponímia de um lugar.
Tu e eu somos levados por um rio quando se extingue a existência e passamos a ser memória em vias de extinção, assim que o tempo, na forma de um rio que passa com a cadência dos dias consecutivos, invade o nosso espaço vital e nem sequer memória passamos a ser. A menos que fiquemos emoldurados na toponímia. O que, para os ousados e os que de si têm uma medida acima do espelhado, é preferível a serem condenados a mitos impossíveis.
Sem comentários:
Enviar um comentário