Fontaines D.C., “Bug”, in https://www.youtube.com/watch?v=NtEFQLB7Vds
Efémeros olhares vertem-se sobre as cicatrizes do mundo. As cortinas descem sobre o entardecer, congeminam a ossatura cansada que começa a preparar o desligamento. O dia começa a extinguir-se, abate-se sobre a hibernação temporária a que se dá o nome de sono.
O sono não deixa que os sonhos sejam párias. Podem assomar na forma de pesadelos, precipitando-se como convulsões sobre a cama do corpo, colonizando-o, domando a sua vontade. Os sonhos são o esconderijo de quem somos. E mesmo que se fundamentem em vestígios conhecidos, ou fragmentos da realidade, são como um poço sem fundo que nos traz um esconderijo não convocado.
A mitologia dos sonhos cerca-nos com a sua vontade própria, irrefreável. É como uma maré que ninguém consegue parar e toma conta do areal limítrofe, adulterando-o, e nós não passamos de espectadores, tão passivos quanto é devido ao papel de um espectador. Os sonhos ocupam as omissões involuntárias como se deixassem vir ao de cima um terreno baldio de que não sabemos o paradeiro.
Como esconderijo indisfarçável, aos sonhos compete trazer uma geografia que se joga num plano intermédio. Não é a representação da vida traduzida pelos sonhos, mas também não é uma fantasiosa ilustração de uma vida como sua imagem alternativa. Os sonhos, sem perderem contacto com o palco onde decorre a vida, juntam-lhe a lírica dimensão do irreal, a fantasia em barda que parece querer desdobrar a vida em várias camadas.
Os sonhos como esconderijo não se entranham num desagrado da vida. Deles sabemos que também podemos ser heterónimas vidas projetadas numa lente difusa, rarefeita, onde os sentidos se confundem numa baça aridez. Ou são uma exigente demanda, fazendo com que a inauguração do dia pareça o seu prematuro ocaso; ou são uma planície fértil onde se fecunda uma vida diferente, esconjurada das angústias que a preenchem.
Às vezes, os sonhos são a paredes onde se desenham os esconderijos não intencionais. Um retrato diferente, as pinceladas gotejando dos dedos amorfos domados por Morfeu.
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