The Hard Quartet, “Our Hometown Boy”, in https://www.youtube.com/watch?v=LAMWAzo_Y4k
O CEO de uma empresa cotada em bolsa foi demitido porque tinha uma relação “amorosa” (chamemos-lhe assim, para fazer o favor ao pudor reinante) com uma diretora da empresa que, portanto, era sua subordinada. As notícias e a Galp (não necessariamente por esta ordem) fizeram a questão de enfatizar que o CEO demitido violara o código de conduta da empresa. De acordo com o código de conduta, uma relação “amorosa” (ou do género) entre duas pessoas com responsabilidades de gestão não está vedada, mas deve ser reportada. O CEO e a diretora não o fizeram. Ato contínuo, depois de uma denúncia (obviamente anónima, pois então...), o CEO foi exonerado. As notícias e a Galp foram omissas quanto ao destino da diretora.
Do ponto de vista legalista, a empresa limitou-se a seguir os trâmites e a aplicar as medidas previstas para o incumprimento do código de conduta. Lá diz o povo, no adágio conceituado, “quem anda à chuva, molha-se”. As responsabilidades internas do CEO são incompatíveis com o desdém pelo código de conduta. Como deve dar o exemplo – estou a seguir o raciocínio puramente legalista e dos que cuidam da moral e dos bons costumes com zelo – foi o CEO, com a ajuda solícita do anónimo que participou o caso, que abriu a porta de saída da empresa. Omitir também é mentir, ora essa. Se apenas contasse a perspetiva legalista, este seria só um caso com interesse para a comunicação social porque era preciso saber as razões da demissão do CEO de tão importante empresa para a economia nacional. A bolsa de valores agradece o obséquio da transparência.
No plano ético, é legítimo perguntar se o CEO estava obrigado a cumprir o código de conduta. É aqui que os imperativos interiores de consciência se desviam da abordagem legalista. De acordo com o noticiado, o CEO da Galp deu umas facadas no matrimónio ao manter a dita “relação amorosa” com a diretora sua subordinada. Como este país ainda traz a parelha Salazar-Cerejeira agarrada às saias, o fantasma dos comportamentos moralmente censuráveis começou a adejar. Ora essa, senhor CEO, vossa excelência cometeu adultério; e o adultério vai contra as boas normas de conduta social, pois, assim como assim, a poligamia não é credora de reconhecimento social (e, por conseguinte, legal) e pode afetar “o valor em bolsa” de tão conceituada empresa. O CEO não foi exonerado por incompetência; foi por ter cometido um atentado à moral e aos bons costumes.
O CEO estava obrigado a comunicar a “relação amorosa” com a diretora? Legalmente falando, sim. Mas o cumprimento das leis não é uma matéria estéril do ponto-de-vista ético. Às vezes, há conflitos interiores entre as obrigações que resultam da observância da lei e os imperativos éticos que concorrem no sentido da sua inobservância. Se o CEO da Galp estava envolvido com uma diretora num arranjinho extramatrimonial, é compreensível que tenha guardado segredo. Se queria guardar segredo da relação carnal com a diretora, corria o risco de a revelar mal comunicasse essa relação ao abrigo dos mandamentos do código de conduta. Toda a gente passaria a saber e a relação extramatrimonial viria também a ser do conhecimento da consorte do CEO e da demais família. Talvez tenha sido por isso que a Galp oficializou a partida do CEO invocando “razões familiares”. Nunca um eufemismo foi tão verrinoso.
O julgamento moral dos outros é uma modalidade com ampla popularidade nacional que, todavia, me causa perplexidade e embaraço. Por desconfiança sistemática, mantenho reservas profundas quando a público se apresentam os curadores da moralidade alheia. São exímios julgadores dos padrões morais em vigor quando os aplicam aos comportamentos dos outros. Desconhecem-se os resultados dos exames de consciência dos membros desta zelosa patrulha. Muito embora não tenha vocação para reproduzir anexins, neste texto abro uma segunda exceção para evocar o famoso “olha para o que digo, não olhes para o que eu faço”.
A polémica do caso mostra, por um lado, que há um ar “cor-de-rosa” a colonizar a comunicação social. Afinal, os folhetins amorosos, com adultérios e traições a tiracolo, constituem o sonho molhado até da imprensa de referência. Por outro lado, fica à mostra o tribunal coletivo que é ativado quando para as notícias vêm casos que metem o que as pessoas andam a fazer debaixo dos lençóis (ou em qualquer outro lado) e, sobretudo, se essas práticas são à revelia do matrimónio, excitando-se com um incontido clamor que acusa de adultério os protagonistas do folhetim. Faltaria indagar, junto das consciências inescrutáveis dos que não reprimiram comentários disfarçadamente censórios, quem nunca teve o seu deslize extramatrimonial e o guarda para memória futura (ou, vá lá, para confissão ao padre de serviço) em segredo exclusivo e inviolável.
Eis a sociedade em que vivemos: uma sociedade muito ciosa dos deveres de consciência que fermentam nas convenções estabelecidas; uma sociedade que tutela com diligência os bons costumes e a moral enraizada, pois há sempre um sacerdote em nós pronto a cumprir o serviço público de quem aviva a memória dos infratores que são punidos com a vergonha social; uma sociedade que adora tomar conhecimento do que acontece às escondidas, debaixo dos lençóis ou em quartos de motel, não reprimindo a sua faceta de voyeur: o sexo dos outros interessa e importa muito mais do que o sexo destes algozes amadores; e se, ao meterem o nariz entre a genitália em ação dos outros, descobrirem um adultério, a sensação de embriaguez é ainda melhor: vamos lá destruir famílias!
Esta é a sociedade que nunca “mijou fora do penico” (se me é permitida a expressão coloquial) e que puxa pelos galões para exercer a dolorosa censura moral sobre os que são descobertos pela inquisição do adultério. Estamos reféns desta moral victoriana de antanho, e isso não augura um futuro auspicioso.
Sem comentários:
Enviar um comentário