31.1.25

Síndrome de esculápio

Lisa Gerrard, “In Exile”, in https://www.youtube.com/watch?v=Wi7UTSaK7tg

Não é por o aforismo certificar que somos todos um pedaço de médicos: a ser confirmado o juízo popular, não se entenderia a tanta competitividade para entrar nas escolas onde se aprende a arte; e menos se entenderia que só a nata da nata seja admitida nos estudos para esculápio. A ideia (certamente também do povo) é que os esculápios são um escol entre o escol. Daí o seu imenso poder corporativo: a nossa saúde está nas suas mãos, não se equivoque o paciente ao tresler a arrogância habitualmente despendida por esculápios de diversas gerações.

A ordem de trabalhos deste texto não é sobre o poder oligárquico dos esculápios. É para trazer à colação uma incongruência entre o conhecimento como o temos por adquirido e a imagem popular que assegura, com a intermediação de um provérbio, que não há ninguém que não seja um pouco esculápio. Assim o confirma a propensão para a automedicação e para o autodiagnóstico, depressa estendido ao diagnóstico dos outros feito de “saber feito” (ainda está por definir os termos deste conceito), um muito “não vás ao médico que ele/ela vai dizer o que acabei de te dizer”. A serem seguidos os conselhos periciais de afamados esculápios educados na escola do “saber feito”, é sempre um entesouramento que o bom cidadão consegue (por deixar de dispendiosos estipêndios a esculápios certificados).

A vocação para o diagnóstico inspirado no método em que os esculápios são treinados depressa se contagia a outros domínios. Gabe-se a coerência metodológica: analisa-se o problema, é identificada a sua origem e isolados os fatores que concorreram para a emergência do problema, e o “saber feito” prescreve uma solução para erradicar o problema. É um processo cheio de lisura e coerência epistemológica. Muitos são, assim, esculápios de artes variegadas. 

O método não engana. Já a bagagem de conhecimentos exigíveis para o pôr em ação merece algumas, e fundadas, reticências (se for permitido o eufemismo). Por mais partidários que tenha e lhe seja associada a veia democrática à prova de quaisquer suspeições, o “saber feito” não foi recebido pelos cânones das ciências. O empirismo atira-se em forma de bumerangue para quem o ativou: quantos esculápios de si mesmos erraram no diagnóstico e, por arrastamento, erraram na prescrição? Quantos, de piorarem o seu estado à custa de serem néscios (pois não se diz por aí que a pior ignorância é a não reconhecida?), tiveram de recorrer a esculápios a sério?

Para fim de conversa, devo dizer de minha justiça que ficaria encanitado se o anexim fosse confirmado em relação aos poetas. Ninguém haveria de querer tamanha banalização da poesia.

Sem comentários: