Tunde Adebimpe, “Drop”, in https://www.youtube.com/watch?v=BgF8BiPXQDA
A carestia dos dias arrasta-se em cima do papel onde depostas são as palavras que a boca emoldurou. Uma folha em branco, talvez. Ou uma folha disfarçadamente amarrotada, um protesto contra a altura em que a página era translúcida e todas as palavras eram palavras espontâneas. O mundo não está disposto para esses preparos. É alérgico a essa liberdade.
Se as pessoas não fugissem dos rostos, se elas não fossem enganadas pelos fingimentos, era mais fácil resgatar as páginas claras, sem vincos, e nelas verter as palavras que traduzem a boa-fé. Mas isso era se os termos em que são proferidas as palavras não fossem adulterados. Se não fossem os espelhos os únicos a decantar as veias amordaçadas contra as tempestades que deflagram nas intenções. Pode-se dizer que são contingências a mais e que é humano fazer de conta que são domadas por fora, como se chegasse verter uma camada de verniz para representar toda uma feição interior.
Mas são feitas de papel desbotado todas essas páginas. São feitas de dissimulação as palavras que se entretecem na mudez embuçada. No papel desbotado que as recebe, as palavras entontecem como se alguém as tivesse embriagado. Dizem o que de outro modo não teriam dito. Assim que são tatuadas no papel, ele entra em apressada decadência. No auge da metamorfose, deixa de ser papel amarrotado e enquista-se como papel amarelecido. Nesse papel, as palavras ganham a ferrugem que vai contaminar o papel hospedeiro. A vantagem de sermos espécie exposta ao envelhecimento é que as palavras que forem sendo inventariadas não se perdem nessa metamorfose. São intemporais, à custa da memória que é obliterada.
Ainda está por saber se as palavras embuçadas respondem à demanda do papel desbotado, ou se é por o papel ser desbotado que as palavras se adulteram no fingimento do que deviam ser. Isso é o menos importante: as palavras continuam a ser o passaporte da (nossa) existência.
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