27.1.25

Segunda página (short stories #476)

Mogwai, “If You Find This World Bad, You Should See Some of the Others”, in https://www.youtube.com/watch?v=cV1NGS4uOiw  

          O sal que segue a estrada vazia orquestra os sentidos. Não são as sepulturas ao longe que intimidam, são as convulsões da alma quando ela se estilhaça contra os tiranetes que tomam conta da floresta. Não passam de vultos, carregados com as sombras que os avalizam como preces medonhas a enfeitar o dia arrastado. Se não fossem as páginas acumuladas, não seríamos a lava que guardamos dentro de nós. Não fruam as ameaças contra a vontade; não proclamem os determinismos avulsos para de seguida açambarcarem o que sobra da dignidade. Prescindimos dos véus que continuam a ser a marca registada de quem julga ser nosso tutor. Não damos como trunfo o pressentimento da identidade que acompanha o sangue em ebulição. Como as árvores se dividem em ramos limítrofes, somos toda a geografia percorrida em pessoa ou em sonhos. Selamos essa contingência absoluta, um nomadismo sem opção: pois múltiplas são as identidades que se entrecruzam de outras identidades, como se uma amostra dos vários mundos possíveis habitasse em nós. Esse é o nosso grupo sanguíneo. O indeferimento das identidades por exclusão, a prescrição das ramagens apodrecidas, deixadas para trás como simples memória futura. Viramos a página de rosto. A segunda página está sempre em branco. Mesmo quando hoje depomos a favor da página, coabitando as palavras com a página que deixou de estar em branco. Amanhã, a segunda página aparece outra vez em forma inaugural. Podemos selar diversos prefácios, eles apreciam a excomunhão do futuro para não sermos dele reféns. É por isso que a segunda página é uma sortilégio inacabado, um penhor que não deixamos de ativar para não sermos esquecidos na matéria nobre do tempo. Uma hagiografia habilitada por exceção. Pois é na segunda página que dedicamos as palavras florais que ornamentam os calendários por que nos regemos.

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