23.1.25

Vícios privados, quem os não tem? (Um ícone da esquerda caviar pode vestir uma camisola Lacoste?)

Lush, “Superblast!”, in https://www.youtube.com/watch?v=_uU5DU7P83E

“(...) Tudo na moral é dúbio e subjetivo (...) tudo quanto é prazer é paliativo.” Valério Romão, “O estripador”.

No pesadelo que seria se houvesse um dia que o poder aterrasse em minhas mãos, uma das poucas proibições que não resistia a decretar: proibido seria fazer julgamentos morais dos outros (sob pena – eu lá sei – de o autoinvestido juiz perder direitos cívicos, como o direito de voto da próxima vez que houvesse eleições). O exórdio é importante para emprestar contexto, pois o texto é sobre comportamentos morais que são devolvidos à procedência; e é importante para apresentar credenciais: longe de mim o propósito de julgar moralmente os outros, até quando eles entram em tão flagrante contradição que, diria a voz do povo, se põem a jeito.

Contexto: a esquerda radical e o ódio a tudo que ressoe a capitalismo e capitalistas (ou os ricos, por apanhado). É uma espécie de racismo classista que prospera na esquerda caviar. As manifestações de capitalismo são execradas. O consumismo e, em particular, a preferência por sinais exteriores de aburguesamento, integram o património genético do capitalismo. Insurgem-se contra o efeito-imitação: os endinheirados consomem marcas de renome e engordam os proventos dos capitalistas que detêm essas marcas. Esses aburguesados são os idiotas úteis do capitalismo. Quanto mais popular a marca, mais a procura pelos seus produtos, que assim encarecem. A marca firma créditos e atinge o pináculo onde só têm lugar as marcas de prestígio. Estas marcas só estão acessíveis a uma casta. 

No fim deste processo, os que o alimentam nem dão conta da sua alienação enquanto consumidores, despindo-se de uma cidadania substantiva que devia ser o axioma da sua participação na sociedade. Para denunciar estes comportamentos desviantes, a esquerda caviar está sempre de atalaia, sempre pronta a emitir juízos de valor que encostam às cordas os que cedem ao enamoramento do consumismo.

Mas há privados vícios que colonizam a vontade das pessoas e adulteram os imperativos éticos, sublevando-se contra a retórica que desfila em público. Quando os vícios privados não transcendem a esfera privada, ficam a coberto dos julgamentos morais dos outros. Quando se tornam públicos, numa nacionalização inadvertida da sua feição privada, ficam expostos ao julgamento fácil dos outros. Sobretudo daqueles que são agredidos pela pose arrogante de quem aparece em público como instrutor contínuo dos comportamentos dos outros e, na hora H, falha clamorosamente, sendo enleado na mesma teia de pecados e pecadilhos em que alicerça a sua tão pública superioridade moral. 

Volto ao início do texto: nem nestas circunstâncias os julgamentos de comportamentos alheios por défice de obediência a padrões de moralidade deviam ser admitidos. A punição maior de quem é apanhado a desdizer toda uma retórica moralista – e a ironia do destino, que desaba fragorosamente em cima das suas cabeças – é a contradição que os deslegitima para continuarem a ser eméritos julgadores da moralidade dos outros. Por cada sacerdote destes que seja substituído por um julgador de moralidade de sinal contrário, o resultado é uma soma nula. A sociedade não fica melhor quando exonera um julgador da moral que é substituído por outro que veio julgar o seu passo em falso.

Esta é a litania do capitalismo em que vivemos. Os pequenos vícios não devem ser censuráveis. Antes a sua existência, pois nela levita o império da vontade. O que é sempre preferível, por mais que dite a corrupção das almas, a uma alternativa castradora da vontade. Por isso, não me incomoda que um ícone da esquerda caviar seja apanhado nas ruas de Budapeste a enriquecer-se culturalmente enquanto se passeia dentro de uma camisola Lacoste. A Lacoste agradece a pessoal incongruência e nós deixamos de dar importância a esse julgador da nossa moralidade.

Sem comentários: