22.1.25

Entradas de sendeiro (ou: é a viola no saco)

The Hard Quartet, “Rio’s Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=V0paI3MwISI

Não quadra com o vulto, tanta visibilidade, tanto alvoroço à sua passagem, tanto esbracejar que até parece um totem com seguidores. Mas não é robusto ao ponto de causar sismos só à sua passagem. A voz não se distingue pela gravidade. Não se conhecem proezas, ou cometimentos que o tenham alcandorado a um pináculo. A modesta personagem presta-se ao anonimato – ou à indiferença que, afinal, é o estalão a que quase todos somos destinados no meio de uma multidão.

E insiste: instala a vozearia e as palavras são debitadas sem métrica, apenas ao sabor da conveniência do que assoma à boca, irrefreáveis e imponderadas. Vai distribuindo insultos pelo caminho. Uns ostensivos, não temendo uma reação impensada que pode aleijar a integridade física; outros apenas insinuados, só ao alcance dos que têm capacidades hermenêuticas acima da média.

Para corporizar o papel intencional do elefante na loja de porcelanas, derruba uma jarra que estava num móvel dentro do estabelecimento comercial. Foi de propósito. Os decibéis acima da conta não eram suficientes para armar a tenda. Quando a jarra se estilhaçou no chão, partindo-se em mil porções, ninguém ficou indiferente. Os que não queriam dar palco ao intérprete da baderna enquanto se cingiu à voz tonitruante, não puderam evitar a reação instintiva de quem desloca os sentidos para o lado de onde ecoou o estampido. 

Agora já tinha a atenção de toda a gente nas imediações. Elevou ainda mais a voz. Protestou contra muitas coisas: o mundo em geral (“está cada vez mais irrespirável”), a hipocrisia das pessoas (“deve ser o juro que pagamos pela desconfiança recíproca”), a burocracia que tudo retarda (“há burocratas que se onanizam quando congeminam os tentáculos ainda mais apertados da burocracia”), a frivolidade que campeia (“acordem, não são apenas os que gravitam no estrelato e dizem, de si mesmos, que influenciam a turba; é a turba inteira, a reboque ou não destes ‘influenciadores’”), a mesquinhez de quem não cabe dentro de si e se envaidece por causa de pequenos feitos, porque não há ninguém neste mundo a enaltecê-lo (“é uma reação tão primeva, tão canhestra, um produto dos tempos coalhados”), os mentirosos compulsivos que dão a cara pelas convenções (“são adestrados na arte corrompida de enganar as pessoas, levam a à agua ao moinho à custa da indiferença de quase todos, ou de muitos deles serem incorrigivelmente beócios”).

Chegaram as autoridades e acabou o comício. Os circunstantes não perdoavam o desassossego causado e a catadupa de lugares-comuns e anexins a tiracolo do discurso esbraseado. Depois de algemado, enquanto era encaminhado para o carro-patrulha, cabisbaixo e talvez já arrependido do acesso de loucura, ouviu as palavras murmuradas de um circunstante: “anda lá, palerma, mete a viola no saco, que nunca de lá devia ter saído. Julgavas que isto é o Speakers’ Corner?”

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