Explosions in the Sky, “Wilderness” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=f-8RhsXP6qY
Autoadministrado em doses decerto não homeopáticas, o soro da mentira predispõe-nos para o contexto. Não há outro modo de lidar com o palimpsesto de logros pespegados com o impassível rosto de quem está convencido de uma verdade entranhada. O soro é o ar do tempo em que nos consumimos.
Não é do trono da moralidade que observo como o soro da mentira se tornou o soro fisiológico que higieniza as relações sociais. Dir-se-á: a colonização ditada pela mentira subjacente, estrutural e entranhada, paga-se com a mesma moeda: para uma mentira, mentira-e-meia. E assim sucessivamente, numa progressão geométrica de mentiras que, a páginas tantas, oblitera a distinção entre mentira e o seu antónimo.
Verdade seja dita que a verdade anda em concubinato com a subjetividade. A verdade não se objetiva, tantas as possíveis lentes através das quais os fenómenos observados são decantados, tantos e tão diferentes os pressupostos que servem de alicerce a uma análise. Verdade seja dita que esta é uma expressão que devia ser banida do léxico que orienta a comunicação, para manter a integridade da verdade subjetiva.
Defender a verdade como conceito subjetivo não franqueia as portas da mentira sistemática. Fazê-lo, é tresler a lógica não necessariamente binária da dicotomia verdade-mentira. É possível contar uma mentira à verdade apenas para temperar as circunstâncias que enfeitam o fenómeno observado. Se a ocultação da mentira leva a suportar uma dor duradoura, mentir sobre a verdade – o que se julga ser a verdade – pode ser uma válvula de escape, como se interiorizássemos que é melhor viver na hibernação da realidade. É uma mentira piedosa, uma autoindulgência, sem efeitos colaterais se não houver vítimas no processo.
Mas há a mentira por sistema, a mentira compulsiva, a mentira por exigências estratégicas, a mentira porque passou a ser padrão considerar que os fins justificam os meios, a mentira propositada para atacar um adversário, a mentira arregimentada com o fito de enganar intencionalmente os destinatários, a mentira pela mentira. Estes casos de mentira trazem vítimas a tiracolo. Servem-se do insofismável soro que alimenta a mentira, que a trata como cura de uma doença maior: a mentira é o recurso estilístico para reagir à mentira que lhe antecede, estendendo o império da mentira assimilado numa cascata de mentiras sucessivas.
Com o soro da mentira a legitimá-la, a dicotomia deixa de fazer sentido e só se fala em diferentes graus de mentira. Paz à alma da verdade.
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