25.5.12

Às asneiras que ficaram por fazer (1)


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Num daqueles dias em que parecia que as nuvens embaciaram o sol para sempre. Um daqueles dias em que a azia se consome por dentro de pensamento. Errava nas ruas. Errara nas ruas quando elas ainda estavam apinhadas. Voltara a errar, já sob o juramento das luzes noturnas, quando se esvaziaram de gente.
A meio da fria madrugada desaguara num bar escuro, mal frequentado, talvez a imundície toda na amostra da fétida casa de banho. Sentou-se ao balcão. Foi logo abordado por uma mulher gorda, feia, com uma verruga enorme junto a um dos olhos. A mulher balbuciou palavras ininteligíveis. Não pediu para repetir, nem se importou de saber ao que ela vinha; apenas acenou com a cabeça em sinal de negação. Ao lado sentou-se um homem velho, emudecido pelas rugas. O homem pediu a bebida sem olhar para o lado. Era como se não desse conta da sua existência. Apenas desviou o olhar por instantes para assinalar a bebida no copo vizinho. A música ficou mais baixa. Sentiu um apelo invulgar, ao jeito de torrente de lava a emergir desde as profundezas das veias. Tinha de cauterizar as tantas feridas revolvendo-se nos pensamentos em sobressalto. Tinha de os passar à palavra, à palavra que fosse escutada por alguém. De preferência, um desconhecido. Seria um acaso: sabia lá se o velho sentado no banco do lado estava embebido na necessária sensibilidade. O homem envelhecido parecia um brutamontes vindo da estiva, ou das obras – mas isso eram os (habituais) preconceitos em vaga destilação.
Encheu-se de coragem. Enquanto o velho mergulhava, sôfrego, no brandy, começou a falar. Sem que o homem esboçasse reação. Parecia desinteressado. Deitou o nariz para fora do largo copo, sem desviar os olhos. Cruzou as mãos enormes, também elas enrugadas, fitou o teto preenchido por postais deixados por marinheiros que aportaram vindos de todos os mares. Franziu o sobrolho, num esgar que ao início o atemorizou (pensou: “não tem paciência para me ouvir”). Fez-se ouvir numa voz poderosa e rouca, cansada pelas rugas retratadas no rosto:
- Pareço-te psiquiatria? Apetece-te falar com alguém mais velho? Não vês neste bar ninguém mais indicado? Acho que tens razão (depois de olhar em redor e anuir na fraca clientela). Mas não pressintas em mim um oráculo. Faço-te o favor. Apenas de te ouvir. Se achas que te faz bem.

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