Sob a penumbra de um pesadelo: uma estrada sinuosa percorrida num automóvel anquilosado, sem as reparações que o habilitavam a passar na inspeção. Mas não é a estrada, ou o medonho estado do automóvel, que amedrontam. É estar sentado no banco da frente, no lado oposto do condutor, e olhar para a esquerda e reparar na falta de destreza do condutor.
Ou um pesadelo ainda pior: a mesma estrada, sinuosa e solavancada; o mesmo condutor; desta vez, o automóvel moderno, em bom estado e dotado de todas as modernas tecnologias que ajudam a condução. E, mesmo assim, sentado no banco da frente do lado direito, a mesma sensação de insegurança que parece apertar a jugular, à espera que a próxima curva seja desfeita sem sucesso, o automóvel despenhando-se de um alcantilado desfiladeiro antes de se contorcer em sucessivas voltas até encontrar o repouso do vale situado no ermo onde o desfiladeiro termina. E tudo por causa do condutor. Do péssimo condutor.
O pesadelo prosseguia, com dois passos dados atrás na cronologia: sobressalto pelo permanente desassossego causado pela inépcia do condutor, proponho a troca de lugares. Invoco, em mentira despudorada, mas exigível, a condição de piloto de testes. (Um eufemismo para motorista, uma arte que entrou em desgraça ante acontecimentos recentes que retratam os motoristas como kamikazes que voam em estradas e autoestradas.) O condutor, assoberbado e mergulhado para o interior de si mesmo, não responde. Porventura nem terá ouvido as minhas palavras – e, menos ainda, sentido como estou aterrado pelo abismo que parece estar a uma braçada de distância.
Acordo do pesadelo. Não estou como passageiro involuntário de um automóvel conduzido por um incapaz para a função. Vejo a estrada diante do olhar, como se a tivesse memorizado numa viagem imaginária. Vejo como é sinuosa e solavancada. Vejo como o automóvel recebeu as últimas atualizações e rivaliza com os seus émulos, os originais que são a nata da modernidade. E vejo o rosto do condutor pendido sobre o pesadelo já ultrapassado, um espelho que parece perene. E não perece.